Marcelo Henrique: solidariedade mas sem assistencialismo religioso

Marcelo Henrique

A velha máxima continua em voga: “Não dê o peixe; ensine a pescar”, símbolo da verdadeira inclusão social, caminho para reduzir o enorme contingente de pessoas que vivem em condição de marginalidade. Nas esquinas das grandes cidades, ainda, é possível observar cartazes e placas do tipo: “Não dê esmolas. Se você quer, realmente, ajudar, ligue…”.

Historicamente, as filosofias e seitas religiosas sempre andaram de mãos dadas com o assistencialismo, mediante práticas que visavam prover as necessidades básicas dos indivíduos (e/ou suas famílias), com campanhas de arrecadação de donativos (gêneros alimentícios, vestuário, remédios) ou doações financeiras. Em paralelo, também existiam os mutirões (para construção/reconstrução de habitações) e eventos de ação social (corte de cabelo, atendimento médico e odontológico, expedição de documentos, etc.). Na esteira, ainda, da chamada filantropia, as instituições religiosas se interessaram pela criação e manutenção de associações de cunho médico, educacional ou assistencial, como hospitais, orfanatos, asilos, albergues e creches. Em muitos casos, referidos organismos operam como “braços” das religiões.

Este cenário predomina nos dias de hoje e, em muitos casos, o reconhecimento do público (sociedade) e o apoio governamental (convênios) garante a continuidade de projetos relevantes e produtivos para as comunidades em que eles se inserem. Neste particular, se observa que diversos cidadãos (mesmo não participando diretamente como associados, de tais entes) destinam donativos (bens ou valores financeiros) às chamadas “obras sociais” religiosas, evitando, inclusive, o desaparecimento das próprias instituições, pela precariedade de recursos, já que não se pode viver e operar (apenas) “à custa do Governo”. Creio, destarte, serem dignos de registro, aplauso, apoio e reconhecimento todos aqueles que se devotam graciosamente (ou, no caso de profissionais, por modestos salários), a esta causa.

Na outra ponta desta realidade figura a prática da caridade nas instituições religiosas (não vinculadas institucionalmente às áreas de saúde, educação e assistência social), expressa, sazonal ou permanentemente, em campanhas de cestas básicas, do “quilo” (arrecadação de gêneros alimentícios de determinada espécie e quantidade), agasalhos, remédios, material de limpeza ou de construção, para ficarmos nos principais, e as caravanas ou grupos de visitação a hospitais, sanatórios, leprosários, orfanatos, favelas, entre outros, e, por fim, o preparo e distribuição de refeições (sopa, café, almoço).

Evidentemente, estas realizações são propostas pelos próprios adeptos das religiões (fiéis, participantes, frequentadores ou dirigentes associativos) e contam com a colaboração de muitas pessoas, bem-intencionadas, atraídas pelo discurso da necessidade da caridade cristã, com alusão à parábola do bom samaritano, atribuída a Jesus de Nazaré, o principal ícone da cristandade.

No ato assistencial, devemos ter cuidado de não vincular a “caridade” com as ideias de cunho religioso e proselitista. Relembrando duas premissas fundamentais à compreensão das ideias, devemos lembrar, em primeiro plano, que as palavras são neutras em sua origem, e se condicionam à construção filosófico-ideológica que empregarmos, no ato comunicativo. Daí o cuidado de não inserir o auxílio nas premissas de aceitação dos dogmas ou verdades religiosas. Secundariamente, mesmo que haja um substrato ideológico, centrado em livros religiosos – como os Evangelhos cristãos – é imperioso compreender que a inteligência e o raciocínio são individuais e que a aceitação de afirmações, orientações e textos religiosos não deve decorrer nem de imposição, nem de aliciamento (que se amplifica quando o indivíduo que procura ajuda ou auxílio se encontre psicologicamente abatido). Neste sentido, as prédicas religiosas que se direcionam à “salvação” espiritual não podem estar em evidência, nem em relação ao necessitado, nem em relação aos voluntários de obras sociais. A essência cristã, deve ser voltada não à “conversão” das pessoas, mas ao ato de amparo e atendimento, simbolizando “em espírito e verdade”, a ideia da fraternidade, a aproximação em relação ao outro, resgatando ensinamentos pontuais contidos nos ensinos de Jesus, como o “fazer ao próximo o que quereríeis que vos fizessem”, “a fé sem obras é morta”, e “o que fizerdes a um destes pequeninos é a mim (Jesus) que vos fizerdes”.

Toda proposta de espiritualização da Humanidade, assim, partiu e parte do (bom) combate ao materialismo, reintroduzindo as ideias sociais no cenário religioso – fortemente preocupado com valores espirituais ou com o futuro após a morte, em todas as suas vertentes –, fazendo com que, com base em um tripé trabalho-solidariedade-tolerância, existam iniciativas voltadas a melhorar as condições existenciais de inúmeras criaturas, sendo, assim, uma releitura conceitual dos princípios da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.

A caridade – como assaz todas as virtudes espirituais – não pode ser encarada como obrigação, prescrição ou condição sine qua non para a evolução espiritual. No aperfeiçoamento de nossa conduta, internalizamos naturalmente (e não de modo forçado) a ideia de nossas boas relações com o próximo, tratando-o com isonomia em relação a nós, destinando-lhe a mesma atenção que, dos outros, gostaríamos de receber e, embora, a princípio, possamos até, nos condicionar à prática caritativa, seguindo modelos pré-definidos, na sequência, incorporando certos hábitos ao nosso proceder, já não mais nos damos conta de que estamos “fazendo” caridade.

Finalmente, honrando o título deste artigo, devemos dizer que, apesar de existirem resultados positivos do assistencialismo religioso entre os movimentos e instituições de todos os tempos (“de tudo retém, pois, a melhor parte”), este modelo tradicional não se coaduna com a proposta da sociedade do terceiro milênio, carecendo de um redesenho, reconceituação ou ressignificação. Se os princípios acima citados não são exaustivos em si mesmos e carecem de materialização (implementação) nos cenários sociais, as ações sociais devem ser, politicamente, voltadas para a mudança das conjunturas, para instituir projetos inclusivos e de alcance de cidadania plena. A liberdade de ação (derivada da de pensamento e de convicção) – base axiológica das religiões cristãs, ainda que condicionadas às Leis de Deus, como todas assim expressam – não deve ser direcionadas, jamais, ao condicionamento de nenhum indivíduo, sobretudo os assistidos ou atendidos por iniciativas assistenciais, seja pela doutrinação ou pela indução.

A verdadeira caridade ou prática assistencial com fundo cristão precisa vencer os limites do proselitismo religioso, inclusive o que prescreve, em relação à sua sugestão ou fomento, a ideia religiosa de condenação futura (espiritual) daqueles que não fizerem “nada” por seus semelhantes. Em outras palavras, a caridade que foi expressa, por exemplo, na conhecida (e já citada) Parábola do Samaritano, deve ser uma ação consciente e íntima, direcionada à promoção da dignidade humana e ao exercício dos direitos fundamentais. Mas, em seu escopo e fundamento, deve permitir que o atendido (assistido) possa reunir as condições de livre-exame e decisão, e não ser forçado a seguir preceitos de natureza religiosa, seja qual for o matiz. Ao indivíduo, assim, mesmo dependente da assistência social que advenha de qualquer igreja, templo ou associação religiosa, deve ser incentivada a sua liberdade, para que ele mesmo possa escolher, se assim o desejar, quando, como e porque deva (ou não) se associar ou se filiar a qualquer ideologia de cunho religioso. Caridade, ou fraternidade, na relação interpessoal e no atendimento aos socialmente carentes, mas, sim e sempre, com liberdade! Será possível?

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