Caetano escreve sobre Chico: “Somos obrigados a crer no povo brasileiro”

“Fui ontem à noite ver o show de Chico Buarque. Fiquei extasiado, não somente porque estávamos diante de um artista imenso que nos deixa esperando anos para vê-lo atuar; nem apenas porque os lindos versos de “Caravanas” trazem “suburbanos como muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá”; nem só porque o cenário de Hélio Eichbauer, com esfera armilar esboçando assimetrias a partir do sistema concêntrico, estende suas cordas de assinatura a uma complexidade de rede de ondas, movimento e poesia; nem mesmo porque “Massarandupió” traz a rica música que habita o coração de Chico Brown.

Ou porque o repertório contenha sucessos cantados pela multidão e que estes sejam todos posteriores aos clássicos que fincaram Chico no lugar que ocupa em nossas vidas: não há “Quem te viu, quem te vê”, “Carolina”, “Januária”, “Samba do grande amor” ou “Noite dos mascarados” – nem pensar em “Pedro Pedreiro” ou “Olê olá”: para um cara da geração de Chico, o repertório é todo de coisas novas, a maioria datando de quando ele entortou seus caminhos harmônico-melódicos, toreou suas rimas (justo quando um idiota da imprensa disse que não ouviria seu novo disco por já saber o que iria encontrar: era um erro perfeito).

É uma exuberância.

Os arranjos de Luiz Claudio levam ao máximo a elegância musical que ele sempre apresenta.

Mas a força vem de como tudo isso foi estruturado dentro da concepção bossa nova.

Um homem de voz pequena e anasalada domina o universo, rodeado por sons econômicos e profundos, equilibrados e misteriosos. Da forma dos arranjos (que contam com o canto perfeito de Bia Paes Leme) à política de volumes da amplificação (finalmente um show que não rompe nossos tímpanos toma toda a grande sala de difícil acústica!), tudo funciona para expor a realização da bossa nova, do seu essencial. É a vitória da bossa nova verdadeira, sua vingança, sua definitiva consagração, desmentindo a sensação de que o Brasil não se respeita: ao contrário, ali parece que o Brasil chega finalmente a merecer a bossa nova. E nada disso seria possível sem a lealdade de Chico à prosódia irretocável, à rima que vem com a ideia, à melodia que homenageia a tradição e amadurece para quase se desmelodizar.

Ouvindo Chico assim, somos obrigados a crer no povo brasileiro.”

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