Vácuo de ideias

Denominações de "esquerda" e "direita", se já não tinham muito significado, perdem o pouco que conservavam, pois partidos de "esquerda" fazem sem o menor pudor alianças com partidos de "direita", como se isso fosse a coisa mais natural do mundo

Denis Lerrer Rosenfield- é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul- O Globo

A política brasileira está dando mostras de um  cenário deprimente, cuja característica principal é um vácuo total de  ideias. Partidos se digladiam por tempo de rádio e televisão, estando  dispostos às mais distintas alianças, sempre e quando esse tempo seja  preservado. Alianças não obedecem a nenhum imperativo de programas,  valores e ideias, mas tão somente a ganhos pragmáticos imediatos. É como  se partidos renunciassem a si mesmos. O que fazer com o Poder  conquistado, além de preservá-lo, não entra minimamente em consideração.

Denominações  de “esquerda” e “direita”, se já não tinham muito significado, perdem o  pouco que conservavam, pois partidos de “esquerda” fazem sem o menor  pudor alianças com partidos de “direita”, como se isso fosse a coisa  mais natural do mundo. Alianças impensáveis há apenas poucos anos  tornaram-se corriqueiras, tudo sendo virtualmente possível. Se não há  menor apego a ideias e valores, não surpreende que negociações  partidárias sejam feitas nas mais distintas direções. É o terreno do  vale-tudo porque valores nada valem.

Não deveria, portanto, causar  tanto impacto que as igrejas evangélicas estejam progredindo  eleitoralmente, agindo à revelia dos partidos, segundo os seus próprios  interesses específicos. Partidos são, para elas, meros instrumentos, o  que valeria para praticamente todas as agremiações, nenhuma delas  apresentando uma proposta abrangente que valha para toda a sociedade.  Partidos deveriam mostrar que seus interesses particulares, por exemplo,  têm validade para toda a sociedade, fazendo, neste sentido, a passagem  do particular para o universal e o coletivo.

Nesta perspectiva, as  igrejas evangélicas estão ocupando um espaço deixado vazio pelos  partidos, assumindo valores que são reconhecidos não somente por sua  clientela tradicional, mas ganham também amplos setores dos eleitores.  Estão, desta maneira, redesenhando, na sua ótica própria, as relações  entre política e valores, tanto mais eficazmente que os partidos têm  abdicado da defesa dos valores.

Tomemos o caso da discussão sobre o  aborto e a união homossexual. Independentemente da consideração de se  ser contra ou a favor, o mais relevante é que se tenha posições a  respeito, sendo essas discutidas e defendidas em praça pública. As  igrejas evangélicas defendem as suas posições e não por serem essas  retrógradas ou atrasadas, o que pressuporia que os defensores do aborto e  da união homossexual seriam tidos por “progressistas”, mas porque  veiculam ideias da vida (a ser considerada desde a fecundação) e da  família (baseada na união entre homem e mulher).

Ocorre que os  partidos políticos estão fugindo dessas questões, pois, sendo  essencialmente controversas, produzem efeitos políticos e eleitorais.  Ninguém, incluindo os partidos, está infenso a assumir consequências  decorrentes da defesa de posições a favor ou contra. Isto seria, aliás,  natural. O que não poderia acontecer – mas é o que está acontecendo – é  que os partidos políticos não sejam a favor, nem contra, mas muito antes  pelo contrário. Ao desertarem do campo das ideias, deixaram o campo  vazio para que outras organizações o ocupem.

Questões públicas  exigem exposições de princípios. Nessas questões em pauta, há  considerações relevantes sobre a liberdade de escolha e os seus limites,  sobre o que é considerado como natural, sobre a concepção da vida,  estando essa dotada ou não de uma finalidade própria, sobre o que é  saúde pública, sobre o que é o exercício legítimo da diferença e assim  por diante. Trata-se de questões públicas que requerem um tratamento  eminentemente racional, independente de orientações religiosas.

O  recurso a um texto sagrado não deveria ser aqui de nenhuma valia, pois é  de sua natureza ser válido para aqueles que nele creem. Logo, se  valesse somente a orientação religiosa, apenas os fiéis deveriam seguir  as diretrizes relativas ao aborto e à união homossexual, não devendo ser  elas objeto de uma lei pública.

Os partidos políticos, no  entanto, estão fugindo desse debate, atentos somente aos seus interesses  eleitorais mais imediatos. Nas últimas eleições presidenciais, o  espetáculo foi deprimente tanto no que concerne ao PT quanto ao PSDB,  ambos partidos assumindo posições ao sabor das oscilações de opinião  pública, cujo único pilar era a conquista do voto. Aliás, ambos partidos  já foram – ou são -, por exemplo, favoráveis ao aborto ou à união  homossexual, porém se recusam a assumir essa postura por medo das  consequências eleitorais. O espaço não ocupado por eles termina sendo  ocupado por outros.

Referi-me, na abordagem dessas questões,  principalmente aos evangélicos, por serem esses os mais claros e  aguerridos, não se envergonhando de suas posições. A Igreja Católica,  embora sua corrente hoje principal assuma também essas posições, tinha  abandonado parcialmente esse campo em proveito de posicionamentos mais  propriamente sociais e políticos, inclusive com o marxismo ganhando  posições em seu seio em detrimento do cristianismo propriamente dito.

Em  nome da revolução, bem tido por maior, chegou a fazer concessões a  valores então tidos como menores. A partir do momento em que setores  seus passaram a se comportar como se fossem partidos políticos, em  estreita vinculação com movimentos sociais que propugnam pela abolição  do capitalismo e da propriedade privada, criaram vínculos ideológicos e  abandonaram o terreno que veio a ser ocupado pelos evangélicos.

Isto  faz também com que os partidos políticos estejam, agora, tentando se  aproximar cada vez mais da classe média ascendente, a dita classe C,  pois essa está abrindo o seu próprio caminho, defendendo os seus  próprios valores, muitos desses sendo considerados como “conservadores”.  Ela tem uma visão própria da relação entre política e valores, relação  essa que os partidos políticos têm uma nítida dificuldade em abordar. A  natureza, dizia Aristóteles, tem horror ao vácuo.

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