Religião e o direito de decidir

Marcelo Henrique

Certa feita, um conhecido programa semanal de uma rede de televisão exibiu matéria baseada em uma pesquisa do Ibope, demonstrando que a maioria dos jovens vinculados ao catolicismo, no Brasil, não segue à risca as regras impostas pela igreja. Por exemplo, 79% das pessoas consultadas, em número de dois mil diziam aprovar o sexo antes do casamento, prática condenada pela igreja.

Uma das razões para as duas últimas visitas papais ao nosso país tem sido a perda de fiéis católicos para outras igrejas (as chamadas neopentecostais, principalmente e outras espiritualistas), assim como, nas respostas dos entrevistados, a inconformidade em relação à insistência na condenação, pela religião romana, de certas práticas consideradas “pecado”, mas que são adotadas pela Sociedade.

Vale lembrar que a Igreja segue, claramente, uma ideologia ou filosofia teológica. Construiu, historicamente, a partir dos Concílios, regras e orientações, muitas das quais verdadeiros dogmas e, de modo muito inteligente, têm disseminado sua “forma de entender” o mundo aos chamados fiéis – e não somente a eles, já que, pelos meios de comunicação, é disseminada a crença católica, que, de certo modo, influencia mesmo quem não esteja albergado sob a religião, na forma de adepto.

A Igreja, também, historicamente, esteve durante muito tempo ligada ao poder temporal (político-social), influenciando não só a “formação” das leis, quanto o próprio modelo de gestão (administração) de inúmeros Estados. Em outros países, mesmo não atrelada aos poderes políticos, manifesta sua influência (vide a esse respeito as audiências dos Pontífices com os representantes dos Estados, algumas delas com “cobranças” sobre posicionamentos governamentais em algumas matérias relevantes). Em paralelo, a Igreja, por seus representantes, também ocupa espaços na política (com inúmeros sacerdotes que exercem ou já exerceram cargos eletivos, no executivo e no legislativo), além da existência de bancadas religiosas no Congresso Nacional). Este não é um fenômeno exclusivo da religião romana, pois os evangélicos agem de igual maneira, na tentativa de influenciar na tomada de decisão (principalmente no campo da aprovação de leis e regulamentos) que sejam conformes à sua ideologia.

Todavia, o discurso religioso nem sempre é aceito pela maioria da população. Em episódios recentes, mesmo com a mobilização de clérigos e políticos vinculados às igrejas, não foi possível demover os parlamentos da aprovação de leis notadamente contrárias aos postulados religiosos (como na aprovação de leis permissivas ao aborto, por exemplo). No Brasil, até o momento, diferentemente do que ocorreu em outros países – inclusive com a convocação de plebiscitos para a discussão de mudanças legais –, a questão do aborto ainda permanece no formato de discursos e, como o parlamento não se digna a debater e a rever as normas que são da primeira metade do século XX, tem sido o judiciário o responsável por hipóteses permissivas para o aborto ou a autorização para a sua realização, inclusive em casos que são delicados e traumáticos para a opinião pública.

Num Estado laico como o nosso, as diferentes convicções religiosas exercem seus poderes de atrair simpatizantes e adeptos. A “perda” de fiéis, entre as igrejas é fenômeno muito natural, já que as individualidades humanas são (e devem permanecer sempre) livres para professarem sua fé e, mesmo que muitas tenham nascido ou sido educadas sob determinados princípios religiosos, a escolha por outras denominações é representativa das buscas que cada ser humano persegue em sua caminhada existencial.

Em tudo e por tudo, devemos valorizar a busca do ser pelas explicações que mais lhe satisfaçam em todos os campos do conhecimento humano e, inclusive, no mais destacado deles, o espiritual.

Alguns estudiosos elencam fatores que mais influenciam as pessoas e a própria Sociedade nas escolhas de quais regras seguir. Muitos deles falam na questão da dicotomia entre Ética e Moral. A Ética de conviviabilidade é, portanto, muitas vezes, distinta da Moral Religiosa (individual ou coletiva – esta última em termos de liturgia). No que tange à conduta (quais regras seguir, quais não, como você pergunta), devemos sempre apelar para o uso da consciência humana (espiritual). A consciência é aquele freio que, dependendo da individualidade, nos impede de cometermos certas ações que sejam “erradas”. Evidentemente, a consciência (do bem e do mal, do certo e do errado, do que fazer e do que não fazer) é pessoal e intransferível. Criaturas mais despertas conseguem perceber a influência do meio em si e, em termos pessoais, adequam seu comportamento (e sua consciência íntima) aos padrões sociais. Outras, não; vivem em eterno conflito.

Não queremos dizer que “todas” as convenções exteriores sejam verdadeiras, benéficas e úteis. Longe disso! Daí a diversidade de regimes, sistemas, ideologias, políticas… Em todo caso, a regra áurea da convivência social é a do respeito ao semelhante, o tratar os outros com os mesmos parâmetros que desejaria ser tratado. Parece que um certo personagem “religioso” já prelecionou, há muito tempo, tal comportamento, não? Se verificarmos bem, a grande maioria das crenças e filosofias religiosas de nosso tempo endereçam o ser para esta prática: respeito ao semelhante, para ser respeitado. Queremos Ética melhor do que esta?

Obviamente, existe um componente que não pode ser deixado de lado, nestas análises, que é o “econômico”, porquanto a diminuição do número de fiéis preocupa os líderes religiosos, que têm de se adequar aos “novos tempos”, em que menos adeptos significam, amiúde, menos contribuições, menos vendagem de “produtos” religiosos, menos dinheiro para “obras sociais ou litúrgicas”, etc.

Há quem diga, assim, que as igrejas também “dançam conforme a música” e, para granjear ou manter adeptos, de tempos em tempos, pode se observar certas “mudanças” nas orientações que emanam de seus líderes e representantes. Fala-se muito, hoje, em termos de sociologia, que a abertura e a liberdade sexual dos tempos presentes podem levar a uma revisão dos posicionamentos (principalmente da igreja romana) sobre a prática de atividades sexuais, o divórcio e o aborto, porque pressionada por seus fiéis seguidores. De modo geral, entendo que isto não vem ocorrendo nos ministérios religiosos.

Contudo, a Igreja tem posições claras, construídas ao longo dos séculos, baseadas em seus dogmas, mandamentos e sacramentos, e dificilmente se vê coagida por qualquer pressão do público. O que ocorre, muitas vezes, é um certo “relaxamento” das próprias pessoas, em relação às prescrições da fé, esperando que, algum dia, recebam o “perdão Divino”, por meio dos próprios ministrantes religiosos. Os temas de hoje podem não ser os de amanhã, porque as preferências e as prioridades se alteram conforme o curso da evolução social. Paralelamente, muitos fiéis podem não “conhecer” a visão religiosa – mesmo freqüentando (com mais ou menos assiduidade) os templos e as reuniões religiosas.

De outra sorte, em muitos setores da vida humana, quando a Igreja “interpreta” ou se propõe a analisar as contingências da vida, em razão de seus dogmas e seu conservadorismo, impede debates, “fechando questão” e apondo “ponto final”. Assim, mesmo escorada em sua proposta ideológica e tratando tudo como “questão de fé”, impede que se discutam racionalmente as questões que influenciam o nosso viver, distanciando-se das próprias pessoas. A conclusão é óbvia: fala para si mesma, ou para seus adeptos, não conseguindo “atravessar” os muros e as paredes das Igrejas. O discurso, quando não permite o contraponto, ressoa no vazio e só faz proselitismo, nada mais!

Também, de maneira geral, especialistas falam na notória diferença entre os “estilos” da Igreja Católica e das Neo-pentecostais. As primeiras passam, geralmente, uma imagem sisuda e censurativa, enquanto as últimas, generalizadamente, adotam um padrão mais despojado e alegre. Estes dias, andando pelo centro da cidade, passei em frente a uma “livraria evangélica” e, curioso, entrei. Lá dentro, fiquei surpreso com um livro na estante, bem em destaque, uma espécie de “guia” para encarar o sexo, como fonte de prazer para o crente. É um avanço, levando em consideração que, há alguns anos, o assunto poderia ser considerado tabu em muitas igrejas.

O “boom” das igrejas evangélicas – que se multiplicam a cada dia, com novas vertentes ou dissidências – deve-se ao fato de que muitas delas – as Igrejas – também têm se “moldado” ao público que pretendem “cativar”. Não sei, ao certo e com franqueza, qual a posição de todas as igrejas quanto ao uso do preservativo sexual, a posição em relação ao aborto e a prática sexual (antes ou fora do casamento). No entanto, não é só isso que conta. O que vale, no meu entender, é a forma de se relacionar com o fiel.

Há, então, mesmo dentro da filosofia católica, um movimento chamado carismático, considerado mais ruidoso e alegre que os demais (dentro do próprio catolicismo), o que mostra a “adaptação” para atender aos anseios dos profitentes daquela filosofia religiosa. Percebe-se, também, aqui ou ali, o apelo à grande massa juvenil e, neste expediente, são os próprios jovens que atraem outros jovens, etc. Também existem as religiões cujos adeptos e representantes saem às ruas, batem de porta em porta, entregam folhetinhos, fazem abordagem para convencer os “indecisos” ou os “insatisfeitos” para participar das reuniões religiosas.

Outra diferença capital entre o padrão católico e o evangélico está na diversificação dos públicos. Todo dia tem uma reunião diferente: para empresários, para donas-de-casa, para a família, para os jovens, e assim por diante. Efeito do Marketing para atrair as pessoas com foco em suas “tribos” e interesses. Também nos cultos evangélicos, os jovens se sentem muito mais à vontade, porque na igreja tem banda, baile, comida, bebida (não-alcóolica), shows, etc. Alguns católicos, ultimamente, têm seguido o mesmo “trajeto”, promovendo eventos similares. Tudo isto em nome da “concorrência” da fé!

De outra sorte, há diferentes formas de atrair adeptos e simpatizantes – ou de preservá-los diante das opções disponíveis. Uma delas é o chamado engajamento social, a participação em movimentos do povo, dos trabalhadores, dos sem-terra, dos excluídos, etc. A participação social (da igreja) é, assim, um importante elemento para esse Marketing. No caso do catolicismo, as últimas temáticas da Campanha da Fraternidade, têm sido direcionadas às necessidades sociais e os problemas vividos pela nação brasileira, até com relativa ênfase na abordagem. Mas, em contrapartida, há padres e religiosos que abominam a ideia da participação direta na política (ou em políticas sociais). Tudo depende, então, da liderança religiosa local e do “rebanho”. Há os que são mais sensíveis a tais apelos e há os que prefiram (apenas) a homilia tradicional.

O fiel (ou o adepto de dada religião) é aquele indivíduo que está em constante busca (das respostas para suas indagações mais íntimas). Não há uma religião melhor do que as demais, nem uma que seja destinada a todos. Cada pessoa tem o seu próprio “timing”, isto é, cada um de nós se encontra num patamar e num momento muito próprio de despertamento. Para uns, a filosofia católica basta. Para outros, a evangélica ou a budista são melhores. Para terceiros, o Espiritismo sacia sua fome e sede de conhecimento acerca do “sobrenatural”. Todos estão certos, pois o que diferencia a compreensão “religiosa” é a condição individual de cada um de nós, que nos sentimos satisfeitos (ou insatisfeitos) conforme aquilo que nos é apresentado. Conheço pessoas que já se consideraram adeptos de “n” religiões. Cada vez que as encontro, elas estão em um “templo” diferente. Continuam “buscando” e, talvez, o façam até o fim (desta) vida. O importante é estar bem consigo mesmo, com sua consciência, ou seja, que a filosofia, a homilia, a teoria não “agrida” seus sentidos, sua consciência, sua Ética pessoal.

Hoje e sempre, penso que o perfil do fiel seja personalíssimo. Evidentemente que num mundo mais “liberal” como o nosso, isto é, sem a influência de regimes ou sistemas despóticos, anuladores das liberdades (individuais e coletivas) e com a possibilidade do pluralismo (convivência pacífica de tantas filosofias e crenças), fica “muito mais fácil” escolher e “experimentar”, até se contentar com uma delas. Todas as religiões, assim, no meu entender são válidas e oportunas (exceto, é claro, aquelas “seitas” que visam prejudicar uns ou outros e que conduzam, por exemplo, a suicídios coletivos, como a história registra) e, neste sentido, é preferível “estar no caminho” do que “sentar à beira do caminho”.

Em que situação você está?

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