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Que todos sejamos filósofos, por Thiago Melo

O que sonhamos são representações do nosso inconsciente, segundo o psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung. Nos nossos sonhos não teria ninguém além de nós dialogando com elementos da nossa própria personalidade. Em outras palavras, aqueles cenários e acontecimentos aparentemente desconexos, seriam o que não conhecemos dentro e a consciência projeta fora. A partir deste conceito, apresento esse sonho e a reflexão que eu tive a respeito dele.

Era um cenário pós-apocalíptico. Céu em tons alaranjados, o sol estava indo embora. Uma multidão vagava por um deserto. De dentro, a personagem principal que chamarei de filósofo observava as pessoas desesperadas, estavam famintas e tentavam ir para outro lugar, mas não tinham para onde ir. De repente, apareceu uma luz que irradiava desde a linha do horizonte até tocar a abóbada celeste. Então, antes do filósofo conseguir distinguir quem falou primeiro, as pessoas apontaram para aquela luz e gritaram em uníssono – É DEUS, É DEUS! Foi então que todos começaram a correr, eles queriam alcançar a luz, porém o esforço era em vão.

O nosso filósofo foi junto com as pessoas, mas no meio do caminho, ao olhar para os lados, percebeu que elas estavam pisoteando, ferindo e deixando outras para trás, inclusive crianças, idosos e pessoas portadoras de deficiências. Quando o filósofo ponderou aquela situação, logo em seguida pensou “não quero ir ao céu se for assim, prefiro ficar aqui no inferno que criamos, o reino dos céus está dentro e não fora”. Então sentiu uma luz que invadiu o seu ser e o arrebatou.

Agora vamos a reflexão dos elementos simbólicos contidos no sonho.

O cenário é o caos que como humanidade criamos na terra. Ao correr junto à multidão, o filósofo representou os condicionamentos do lugar que nascemos e a carência de autoconhecimento quando pensamos mecanicamente, somos escravos de ideias preconcebidas ou sistemáticas, sem buscar a nossa própria identidade ou visão da realidade.

As pessoas que pisoteiam e deixam outras para trás para encontrar a “salvação” representam a religiosidade cega que anula o livre pensamento. Ignoram belas verdades universais, são corrompidas pelo egoísmo, ganância e sede de poder. Tudo em nome da teologia da prosperidade, que faz o homem indagar o “divino” para encontrar algo fora, raramente dentro. Quando o filósofo olhou para os lados e percebeu as injustiças que estavam acontecendo retrata nós quando conseguimos refletir sobre a nossa própria realidade e enxergar a nossa responsabilidade nesse caos.

Injustiças sociais, guerras civis não declaradas, genocídio do jovem negro, matança dos líderes dos povos originários, conflitos externos e internos, são responsabilidades de cada um. Se nós não nos posicionarmos, por decisão ou ignorância, caminhamos para o mesmo fim. O preço da salvação não é perder a própria humanidade. Mas seu oposto, desenvolver valores, virtudes e sabedoria. Sobretudo amor. Aquele amor que ama sem esperar recompensa. Que constrói pontes e não muros.

Por isso, no sonho, ao perceber a realidade como ela é, o filósofo foi merecedor da “salvação”. Portanto, o céu jamais seria um ambiente onde as pessoas teriam que passar por cima das outras para alcançá-lo – como temos visto ao longo dos séculos. Que lá é um ambiente de amor, fraternidade e paz. Em tempo algum de medo, abandono e guerra.

Até este momento, na história da humanidade, uma pequena parcela de seres humanos exploraram, escravizaram e oprimiram muitos outros. É preciso superar isso. Quem entender essa conjuntura, é quem será digno do céu.

O sentido de céu empregado aqui é aquilo que as pessoas mais almejam, muitas vezes não sabem o que é, e com todas as boas intenções fazem o oposto, por falta de conhecimento ou bons instrutores munidos de sabedoria e altruísmo. Pagam qualquer preço para conseguir o tão almejado “reino dos céus”. Acreditam que podem manipular até Deus pelo medo ou veneração.


Eles creem que o divino se conquista pela a obediência e fanatismo, não quando expressamos verdadeiramente sua boa nova e boa vontade.

Não é uma reflexão defendendo ou ofendendo alguma religião. É sobre estarmos presentes para enxergar a própria realidade; repensar certas verdades e desconstruir padrões medievais e anti progressistas. Compreender porque, por exemplo, somos uma geração tão depressiva, alienada, lunática e ansiosa, que essas coisas estão relacionadas com a forma como a sociedade foi construída.

Nossos conflitos, dores e traumas individuais ou coletivos são uma consequência de como o povo brasileiro se constituiu – mais profundamente a humanidade. Acreditamos em esdrúxulas teorias da conspiração, em notícias falsas divulgadas em grande escala na internet e em falsos mitos proféticos. Porém negamos, por exemplo, dados científicos sobre degradação ambiental e mudanças ecológicas globais.

Se pisamos nos outros ou pisam em nós, é porque também, muitas vezes, nossos olhos estão toldados. Precisamos parar de cobrir a verdade com um manto de boas intenções. Tudo deverá vir à tona e ficar às claras.

Nós, como indivíduos, temos a tarefa de criar o nosso próprio entendimento do que está acontecendo. É importante termos discernimento do certo e do errado, e não mais usar e adotar a visão já fabricada pela ideologia dos “bons costumes”, meios de comunicação, porta-vozes políticos e falsos profetas. Esses que continuam engordando seus bolsos, dominando e controlando emocionalmente, fisicamente e financeiramente seus subordinados.

É um momento crítico. Precisamos parar de culpar ou pôr a responsabilidade em fatores externos. Não foi Deus que permitiu todo esse descaso. Quando testemunharmos e refletirmos profundamente os males da sociedade, poderemos compreender que somos nós, seres humanos, os responsáveis pela doença e também pela cura.

É indispensável valorizarmos os nossos ancestrais, cultura e história. Buscar a paz dentro de nós, para sermos fator de soma na vida do próximo e não apenas para salvar a própria pele. O clássico filósofo Platão dizia que a melhor coisa que podemos fazer por aqueles que amamos é sermos melhores como seres humanos, porque só assim teremos realmente algo a dar a eles. Enquanto houver sofrimento na humanidade, não é nobre achar-se digno de qualquer céu. Que todo sejamos filósofos.

6 respostas

  1. E esse texto maravilhoso não podia ter saído numa hora melhor, logo após o maravilhoso desfile da Mangueira que também foi um tapa na cara da religiosidade hipócrita de nossos tempos atuais.

  2. Um texto lindo e forte, o qual nos faz refletir sobre o caminho que nós devemos seguir, e na capacidade do ser humano enquanto ser pensante de não ser alienado, e de cultivar e ser amor em meio a tempos tão remotos que nos trazem muitas das vezes, uma imensa ansiedade quando pensamos no futuro.
    Um texto que todos deveriam ler.

  3. Texto muito bem escrito e que demonstra com exatidão a questão da religiosidade de modo geral ser dominada por sentimentos de medo, fator esse que está moldando a nossa sociedade e a vida atual

  4. Excelente texto. Uma reflexão muito atual e importante para essa geração que vive à mercê da liquidez e da ausência de criticidade.
    Parabéns meu querido amigo Thiago.

  5. Esse texto, claramente ,nos remete a uma realidade que hoje vivemos e com certeza abominamos e esperamos que seja por pouco tempo…

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