Os meus Chiquinhos e as liberdades espirituais

Marcelo Henrique

Busco no tempo a referência inicial de Francisco de Assis no meu viver. Católico de formação familiar, fui habituado às práticas litúrgicas na Igreja de Santo Antônio de Pádua, bem no coração de Florianópolis (SC). Penso que neste local deve ter sido o meu contato inicial com as imagens, pinturas e feitos do santo cristão. Aguçando mais a memória, me recordo de uma estátua em que Chico tinha em seus braços um garoto dos seus quatro anos, simbolizando o menino Jesus. E, no jardim da instituição religiosa, uma outra com ele, envolto por pássaros.

Depois, um pouco mais à frente, no início da juventude, já em atividades de música e canto coral, a interpretação do célebre “Irmão Sol, Irmã Lua”, tema do filme homônimo, italiano. Encantado com a música fui em busca da película, em fita VHS, para ver a recontagem cinematográfica de sua instigante história, cheia de percalços e buscas, sua luta interior e seu trabalho por uma democratização da igreja romana.

Mais tarde, com outras andanças espirituais, tomei às mãos o livro de João Nunes Maia, ditado por Miramez, intitulado “Francisco de Assis”, uma obra recheada da mitologia cristã, entremeada a relatos de episódios paranormais vividos pelo personagem, também conhecido como il Poverello (O Pobrezinho) de Assis, sua terra natal, na Itália.

Chiquinho nasceu Giovanni (di Pietro di Bernardone) e virou Francesco, porque deu ouvidos às “vozes” que provinham do seu interior. Atendeu, pois, ao “chamado” de dedicar-se ao ministério cristão, até fundar a Ordem dos Frades Menores (OFM), em que se pregava um retorno aos conselhos de Jesus para alcançar a perfeição, adotando, assim, como o Mestre, uma pregação itinerante, ao invés de se confinar ou vincular a mosteiros e abadias.

Seu traço maior nos parece ser, tendo em vista um sem número de obras e filmes que recontam ou reconstroem a sua existência, a sua íntima vinculação com a Natureza. A postura do Padre sempre foi um marcante estado de irmandade com astros celestes e com os seres da criação, sobretudo os animais e vegetais. Este caráter de universalidade marcaria todo o apostolado de Chiquinho, assim como a proximidade com a pobreza – que embasou inúmeras atividades assistenciais e de atendimento – e com os rejeitados do mundo, como os leprosos.

Ainda sobre os nossos “irmãos menores”, plantas e animais, Francesco guardava de fato uma íntima relação com estes seres. Tanto que, em 1223, pela primeira vez na História, com seus discípulos e pessoas da comunidade, construiu um presépio, representando o nascimento de Jesus entre vários animais. Construindo uma manjedoura bem rústica e dispondo, uma a uma, várias espécies próximas dos homens, o religioso iniciou uma tradição que se eterniza até hoje.

Neste momento em que as investidas contra a Natureza, sejam as na Amazônia, sejam as no Pantanal, dizimam milhares de espécies animais e vegetais e concretizam a ação predatória, do capitalismo selvagem sobre os ecossistemas, sobretudo em nosso país, a inspiração franciscana vem em boa hora para que possamos nos inspirar para exigir dos parlamentos e das instituições públicas e privadas um posicionamento pontual.

Por outro lado, o seu “Poema da Paz” (“Senhor, fazei-me um instrumento da tua paz”) é reconhecidamente um dos maiores cânticos de louvor (e prática) das Leis Divinas, tanto que Dante Alighieri a ele se referiu sempre como “a luz que brilhou sobre o mundo”.

Politicamente, Francesco foi muito importante para estabelecer novos paradigmas para a religião e o envolvimento em questões sociais, prática que até hoje motiva muitos religiosos católicos em todo o mundo. Este ponto me parece fundamental para uma outra retomada dos princípios de fraternidade, solidariedade e justiça social, nos dias de hoje. É fundamental, tanto para os religiosos como para os laicos, voltar a atenção para os excluídos, os socialmente carentes, as minorias e os que sofrem qualquer tipo de preconceito, adotando práticas e iniciando campanhas permanentes para assumir um papel ativo, de protagonistas, para a transformação e o progresso das sociedades. Neste sentido, hoje, mais do que nunca, seja em função do contexto pandêmico, seja pelo reaparecimento de regimes totalitários ou com nítidas propostas de redução de direitos, é fundamental que os bons não se omitam diante da audácia dos maus.

Lembro, então, do “meu” Chiquinho (o de Assis) e amplio a visão para ver um outro Chico, o Bergoglio, que parece estar ditando novos passos para a secular e pétrea Igreja como um todo. O pontífice argentino tem demonstrado sua preocupação, engajamento e liderança na reformulação da Igreja, fomentando movimentos sócio-políticos de resistência ao fascismo e à intolerância, encontrando ressonância entre muitos “homens de boa vontade”. Como ninguém é uma ilha e “o vento sopra onde quer”, é possível constatar ideais de renovação presentes em distintos agrupamentos, em ideologias, religiões ou filosofias distintas, e em várias partes do Globo, simultaneamente. Não tenho dúvidas de que, independente da adjetivação, todos os que se levantam são sensíveis ao progresso, à justiça e recebem apoio por meio dos canais de espiritualidade.

O meu Chiquinho, então, me inspira na pessoa do outro Chiquinho, sem que seja necessária qualquer vinculação de natureza religiosa. E se o tiver, em face da existência, em nosso país, de inúmeros movimentos capitaneados pela Igreja de Roma, não há nenhum obstáculo quanto a isso. O importante é semear a boa semente e que seja ampliado o alcance da mensagem renovadora e transformadora da sociedade.

Que estejamos dispostos a renunciar, como Francesco, de Assis, às conjunturas, ao “modo de ver unitário ou unificado”, às fakenews, às demonstrações de violência e truculência e às tentativas políticas de diminuição de direitos sociais. Que possamos nos irmanar em termos de valores espirituais e que não tenhamos receio em levantar a voz e em manifestar o nosso inconformismo e oposição em relação a tudo o que representa atraso, desrespeito e violência.

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