O ‘desenvolvimentismo de esquerda’

Não é fácil classificar ideias e hierarquizar instituições. Mas mesmo assim, é possível identificar pelo menos três instituições que tiveram um papel central, nos anos 50, na formulação das principais ideias e teses do chamado "desenvolvimentismo de esquerda"

José Luís Fiori – professor titular do Programa  de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do  livro “O Poder Global”, da Editora Boitempo, 2007-Valor Econômico

No Brasil, a relação entre a esquerda e o  desenvolvimentismo nunca foi simples nem linear. Sobretudo, depois do  golpe militar de 1937, e do Estado Novo de Getúlio Vargas, que foi  autoritário e anticomunista, mas foi também responsável pelos primeiros  passos do “desenvolvimentismo militar e conservador”, que se manteve  dominante, dentro do Estado brasileiro, até 1985. Neste contexto, não é  de estranhar que a esquerda em geral, e os comunistas em particular, só  tenham mudado sua posição crítica com relação ao desenvolvimentismo  depois da morte de Vargas.

Não é fácil classificar ideias e  hierarquizar instituições. Mas mesmo assim, é possível identificar pelo  menos três instituições que tiveram um papel central, nos anos 50, na  formulação das principais ideias e teses do chamado “desenvolvimentismo  de esquerda”. Em primeiro lugar, o Partido Comunista Brasileiro (PCB),  que apoiou a eleição de JK, em 1955, mas só no seu V Congresso de 1958  conseguiu abandonar oficialmente a sua estratégia revolucionária e  assumir uma nova estratégia democrática de aliança de classes, a favor  da “revolução burguesa” e da industrialização brasileira, que passam a  ser classificadas como condição prévia e indispensável de uma futura  revolução socialista.

Em segundo lugar, o Instituto Superior de  Estudos Brasileiros (ISEB), que foi criado em 1955, pelo governo Café  Filho, e que reuniu um número expressivo e heterogêneo de intelectuais  de esquerda que foram capazes de liderar uma ampla mobilização da  intelectualidade, da juventude e de amplos setores profissionais e  tecnocráticos em torno do seu projeto nacional-desenvolvimentista para o  Brasil.

Hoje, essa corrente do pensamento recuou e dedica-se cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas

Por  fim, desde 1949, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal)  produziu ideias, informações e projetos que influenciaram decisivamente o  pensamento da esquerda desenvolvimentista brasileira. Mas, apesar de  sua importância para a esquerda, a Cepal nunca foi uma instituição de  esquerda.

Do ponto de vista político prático, no início da década  de 60, a “esquerda desenvolvimentista” ocupou um lugar importante na  luta pelas “reformas de base”, mas, ao mesmo tempo, se dividiu  inteiramente, na discussão pública do Plano Trienal proposta pelo  ministro Celso Furtado, em 1963. Mas, logo depois do golpe militar de  1964, a esquerda e o desenvolvimentismo voltaram a se divorciar, e sua  distância aumentou depois que o regime militar retomou e aprofundou a  estratégia desenvolvimentista do Estado Novo.

Três dias depois do  golpe, o ISEB foi fechado; o PCB voltou à ilegalidade e a própria Cepal  fez uma profunda autocrítica de suas antigas teses desenvolvimentistas.  Mesmo assim, apesar dessas condições políticas e intelectuais adversas,  formou-se na Universidade de Campinas, no final dos anos 60, um centro  de estudos econômicos que foi capaz de renovar as ideias e as  interpretações clássicas – marxistas e nacionalistas – do  desenvolvimento capitalista brasileiro.

A “escola campineira”  partiu da crítica da economia política da Cepal e de uma releitura da  teoria marxista da revolução burguesa para postular a existência de  várias trajetórias possíveis de desenvolvimento para um mesmo  capitalismo nacional. Por isso, a escola campineira fez sua própria  leitura e reinterpretação do caminho específico e tardio do capitalismo  brasileiro e dos seus ciclos econômicos. E se posicionou favoravelmente à  uma política desenvolvimentista capaz de levar a cabo os processos  inacabados de centralização financeira e industrialização pesada da  economia brasileira.

Hoje, parece claro que a “época de ouro” da  Escola de Campinas foi da década de 70 até a sua participação decisiva  na formulação do Plano Cruzado, que fracassa em 1987. É verdade que logo  depois do Cruzado, e durante a década de 90, a crise socialista e a  avalanche neoliberal arquivaram todo e qualquer tipo de debate  desenvolvimentista, independentemente do que passou em Campinas. Mas  parece claro que a própria escola recuou, nesse período. E dedicou-se  cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas, e para a  formação cada vez mais rigorosa de economistas heterodoxos, e de quadros  de governo.

Seja como for, a verdade é que, com raras exceções,  depois do Plano Cruzado, a “escola campineira” perdeu sua capacidade de  criação e inovação dos anos 70, e a maioria de suas ideias e intuições  originárias acabaram se transformando em fórmulas escolásticas. Por  isso, não é de estranhar que neste início do século XXI, quando o  desenvolvimentismo e a escola campineira voltaram a ocupar um lugar de  destaque no debate nacional, a sensação que fica da sua leitura é que o  “desenvolvimentismo de esquerda” estreitou tanto o seu “horizonte  utópico” que acabou se transformando numa ideologia tecnocrática, sem  mais nenhuma capacidade de mobilização social. Como se a esquerda  tivesse aprendido a navegar, mas ao mesmo tempo tivesse perdido a sua  própria bússola.

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