Marcelo Henrique: Saneamento Básico não pode esperar

Marcelo Henrique

Recentemente, após exaustivo debate legislativo – tarefa, aliás, principal do Congresso Nacional, em nosso país, que, quando bem levada a efeito, permite que as alterações no ordenamento jurídico possam conduzir à efetivação de novos paradigmas para a gestão pública brasileira – foi sancionado o Projeto de Lei 4.162/2019, conhecido como o novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil.

Esta nova lei, assim, tem como compromisso a facilitação dos investimentos privados e a paulatina desestatização do setor, estabelecendo como metas de universalização o atendimento com água potável e coleta e tratamento de esgotos, de mais de 90% da população, até 31 de dezembro de 2033.

A partir disso, a expectativa é a captação, pelo Governo Federal, de aproximadamente R$500 bilhões de dólares em investimentos e propiciar a geração de 700 mil novos empregos diretos.

De pronto, vale dizer que o estabelecimento de marcos legais é uma medida muito importante para o Estado Constitucional de Direito.

O citado projeto foi convertido, então, na Lei Federal n. 14.026/2020, de 15 de julho.

Entre os elementos que constam da norma, estão a autorização para a criação de consórcios públicos e a pactuação de convênios de cooperação entre municípios vizinhos, visando a prestação do serviço e, também, a possibilidade de os Estados atuarem em conjunto com os municípios, em casos de compartilhamento efetivo de instalações operacionais integrantes nas chamadas regiões metropolitanas, como em aglomerações urbanas e microrregiões.

Estas últimas, assim, devem ser instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum.

É importante lembrar que o Brasil, como muitas das nações democráticas do mundo, adota o regime de agências reguladoras, para a regulação econômico-social, que consiste na atividade de intervenção direta do Estado sobre a conduta de sujeitos públicos e privados, de forma permanente e sistemática, voltada à implementação das políticas de governo e à materialização dos direitos fundamentais para TODOS os cidadãos.

Convém destacar, outrossim, que a atividade administrativa pública não é direcionada, direta e imediatamente, como uma primeira leitura poderia sugerir, à produção do fornecimento de bens ou utilidades para satisfação de interesses essenciais dos indivíduos e coletividades.

Do contrário, tanto a lei quanto os decorrentes mecanismos de que o Direito Administrativo se vale são destinados a reprimir condutas indesejáveis (incluindo-se a corrupção e seus tentáculos) e, principalmente, endereçar o país à efetiva promoção de modificações nas estruturas sociais.

Em inúmeras hipóteses, portanto, neste novo desenho estatal, iniciado com a Constituição Cidadã e, aos poucos, com a introdução de novos diplomas legais, que regulamentam os direitos e garantias fundamentais, inclusive os chamados interesses transindividuais difusos e coletivos, a Administração Pública claramente assume uma função de “defesa da sociedade”, seja para promover, também com a participação do segmento privado, o alcance aos direitos de cidadania – como os relativos ao saneamento básico – bem como para identificar e reprimir condutas individuais abusivas que possam resultar (ou resultem) em prejuízo aos supracitados direitos e interesses.

Por força da Lei, também, são redefinidas as competências do ente regulador nacional, a Agência Nacional de Águas (ANA), que passa a ter a incumbência normativa, por delegação do Congresso Nacional, para estabelecer os padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas e dos serviços de saneamento básico, assim como a regulação (imposição e cobrança de tarifas decorrentes da prestação) destes serviços públicos, impondo-se a padronização dos contratos correspondentes, culminando na redução progressiva dos cidadãos desprovidos do saneamento e o controle da perda de água, na captação e na distribuição, outro problema ecológico e administrativo importante.

Em particular, como a norma abre espaço para uma maior participação (e concorrência) da iniciativa privada, já que os entes públicos poderão permitir a exploração do serviço, por meio de concessões, derivadas de licitação, é preciso salientar os pontos essenciais desta prerrogativa e permissibilidade, os quais devam ser cláusulas obrigatórias dos contratos decorrentes, enquanto metas: 1) expansão dos serviços (prevendo-se, até 31 de dezembro de 2033, a universalização dos serviços de saneamento, no patamar de 99% da população com acesso à água potável e 90% com acesso ao tratamento e à coleta de esgoto); 2) redução de perdas na distribuição de água tratada; 3) qualidade na prestação dos serviços; 4) eficiência e uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais; e, 5) reuso de efluentes sanitários e aproveitamento de águas de chuva.

A atividade de regulação que compete à precitada Agência, no setor de saneamento, abrange não só o abastecimento de água, como também elementos afetos ao esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos, limpeza urbana e drenagem, hoje a cargo de Estados e Municípios.

E a ela, igualmente, compete a padronização legal destas atividades, permitindo a entrada de novos investimentos e, também, a mediação dos contratos de prestação de serviços públicos, para a garantia do cumprimento das cláusulas pactuadas e do equilíbrio econômico-financeiro das avenças.

E, ao elaborar as normas de referência para a padronização dos serviços, como objetivo finalístico, poderá prestar a importante contribuição de reduzir os custos para cada cidadão usuário.

Alguns desafios são presentes nesta nova realidade, derivada do novo marco legal.

Entre elas, se destaca: a) entrada de novos grupos empresariais, egressos do setor da construção e do mercado financeiro; b) adoção de um modelo estruturado de negócios; c) eliminação, nas licitações, das avaliações com parâmetros subjetivos, evitando a judicialização dos certames; d) emprego de avançada tecnologia digital para o aumento da oferta, a regulação das demandas e a redução das perdas contratuais e de prestação de serviços; e) investimento na capacitação, na qualificação e nos treinamentos dos prestadores, sobretudo os que estão no nível operacional; f) instrumentalização da regulação, como órgão de Estado, com a devida capacidade técnica para reavaliar as estruturas disponíveis e proceder, quando necessário, as revisões tarifárias; g) adoção de práticas de governança corporativa (ESG – Environmental, Social and Governance); e, h) valorização e intensificação da relação com a sociedade, em termos do que vem sendo chamado de “licença social”.

O desafio premente, dizem os especialistas, está centrado na superação dos modelos anteriores, tanto o estatizante quanto o privatizante, isoladamente, tarefa que somente se tornará viável e possível se houver segurança jurídica e a desejável flexibilização para permitir diferentes formas de parcerias público-privadas, país afora.

Como a agência está sendo erigida ao patamar de órgão formulador e, ao mesmo tempo, controlador das políticas públicas, considerada a pluralidade de condições regionais e locais – num país continental – será necessário muito esforço e destacada acuidade, entendemos nós, para definir nacionalmente critérios e regras não estanques e não únicos, sob pena de não se conseguir as parcerias (e os investimentos desejados).

As diretrizes para as diferentes regiões do país, assim, deverão prever algumas peculiaridades ou excepcionalidades, sobretudo considerando que há Estados, como o de São Paulo, em que a atual empresa, a Sabesp, já executa um serviço bem-sucedido e de qualidade.

Outro exemplo interessante é o da região metropolitana de Porto Alegre foi alcançada por um contrato de parceria público-privada, para universalização de coleta e tratamento de esgoto, com previsão de cobertura até 2030, pacto que não pode sofrer solução de continuidade em face da nova parametrização legal, convenhamos.

E as demais regiões do país, em que há praticamente cem por cento de cobertura, igualmente precisam ter um tratamento diferenciado em relação àquelas onde o Estado, tradicionalmente, não conseguiu erradicar os problemas relacionados ao saneamento público.

Mas o maior desafio, mesmo, parece ser a meta de universalização do atendimento, considerando que, atualmente, ainda vinte e cinco por cento da população brasileira ainda não em acesso à água tratada, metade não tem coleta regular de esgoto e que a maior parte deste esgoto coletado não é tratado.

É por isso que dizemos que, além do que se fala em relação à fome, lembrando o querido Herbert de Souza (Betinho), também temos pressa de saneamento público. O saneamento básico não pode esperar!

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