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Festas Juninas: (des)educação e (des)construção de identidade

O texto abaixo é do historiador Gilberto Geraldo Ferreira, retirado pelo blog da sua timeline na rede social facebook, como gesto de aplauso pela genuína coerência e liberdade de análise.

Sei que vou discutir aqui, um tema delicado, porque se trata de uma questão cultural, mesmo sem pormenorizar as suas raízes, mas ao mesmo tempo é bastante identificado genericamente como interiorano ou, em alguns casos, nordestino, que são as Festas Juninas ou o São João (SJ).

É que muitas pessoas discordam dessa abordagem, mas o que quero com tudo isso é justamente mostrar outro olhar: o de quem nasceu e se criou no sítio ou zona rural. É por meio das minhas lembranças do São João na Roça (nome muito em moda na atualidade) e a incorporação dessas festas pelas cidades nos dias de hoje.

A realidade é fragmentada e é o discurso que procura dar ordem, mas em múltiplas combinações, mediando as partes com o todo, os sujeitos com o social, o sensível com o racional, o singular com o universal (PESAVENTO, 2005, p. 70). Sendo assim, o meu olhar fragmentado deve ser entendido como parte, ou apenas uma versão, como uma representação dessa totalidade também plural.

A palavra matuto, etimologicamente, pode significar pessoas que moram no mato ou na roça; eu prefiro dizer que é quem nasce e convive nas relações matutas. Assim, quem mora na cidade pode ser visto como cidadão ou talvez civilizado.

Acredito que a vida na roça ou no mato tenha suas diferenças em qualquer espaço e tempo. Seria possível pensar que o trabalhador rural não tem melhor vida que seu patrão fazendeiro? Mas o que há algo em comum entre os dois? Para um olhar imediatista o mato, o rural.

Possivelmente a vida urbana não teria o mesmo significado para as pessoas que moram na periferia em relação aos que vivem nos bairros privilegiados.

O comum seria o mundo urbano, a cidade e a civilidade?

Gostaria de contribuir na desconstrução de uma mentalidade estereotipada do matuto tão comemorado e vendido nas festas juninas, inclusive nas escolas com suas quadrilhas, demonstrando uma participação na relação ensino-aprendizagem e na valorização cultural de forma pejorativa, salvo algumas exceções.

Memórias da roça

Vou relatar parte da minha memória como matuto e tentar uma imparcialidade (mesmo sabendo da impossibilidade) para refletir sobre essa questão. Nasci em 21 de Junho de 1971 no Sítio Carangonha, Água Branca, Alagoas.

Até os meus doze anos de idade tive pouco contato com a vida urbana, pois, quase tudo que eu necessitava para viver, ali existia. Meus pais, meus irmãos, meus vizinhos, meus amigos, minha escola, o campo do futebol. Lembro-me das dificuldades e das tristezas que envolvem uma família e uma criança rural, matuta e pobre. Mas se tratando de festas e principalmente Festas Junina que simbolicamente seria em nossa homenagem como matutos, e eu como um bom ruralista, gostaria me dar o direito de buscar nas minhas lembranças alegrias vivenciada por mim e meus conterrâneos matutos.

Busco em minha memória as roqueiras que eram utilizadas para festas com tiros animatórios. Elas tinham cerca de vinte centímetros de comprimento e mais ou menos cinco centímetros de diâmetro, feitas de ferro por artesãos. Usávamos uma pólvora comprada na cidade e preparada pelos meus dois irmãos mais velhos: o Juvenal e o saudoso Gerson. Saíamos de casa em casa para festejarmos com a tomada da fogueira com tiros festivos. Um pouco mais tarde, por volta de vinte ou vinte duas horas, procurávamos um forró com sanfona ou com uma ‘moderna” radiola e discos de vinil.

Quanto as nossas vestimentas, geralmente, eram novas: uma para usar na noite de São João e outra na noite de São Pedro. Ainda sinto o cheiro do perfume ou do desodorante da Avon, muito em moda para nós naquela época. O cheiro da minha mãe e do meu pai me levando para algumas festinhas e das brincadeiras deles me oferecendo como futuro paquera das meninas vizinhas. Lembro também do meu medo de haver alguma briga dos homens que bebiam e geralmente tinham facas nas cinturas; ainda tenho medo.

Não me lembro de ir a alguma festa com roupas remendadas e sujas, com chapéu velho despalhado, com os dentes pretos e cariados por falta de escovação, mesmo porque escovava várias vezes ao dia tentando imitar o meu irmão Geraldo que já namorava na época e antes de sair ele fazia uma higiene total nos seus dentes. Também não me vem à memória de falar enrolado sem que meus pares não pudessem me compreender, pois, sei, que a função da fala é fazer compreender e ser compreendido e acho que isso, nós matutos, fazemos muito bem.

Só vim descobrir que sou MATUTO do ponto de vista pejorativo, quando fui estudar na cidade civilizada. E acho que esse papel (des)educativo a escola e a TV fizeram e fazem muito bem. Aí comecei a entender que a marcha para a civilização parecia não ter espaço para a vida rural e para o matuto.

Fico impressionado com a incapacidade da escola, como espaço educativo, de não sacar a construção de estereótipos e a reprodução do lado de dentro dos seus muros, num sentido mais amplo da palavra. A “incompetência” chega a ser tanta que não consegue perceber o tipo de constrangimento da criança matuta em contato com a cidade: em se perceber como um idiota nas quadrilhas ensaiadas durante quase todo mês de maio e junho.

O prêmio vale para aqueles que melhor imitarem ou representarem a falta de condições socioeconômicas de um camponês (poderia pensar por exemplo, na falta de políticas públicas e de distribuição de renda). Isso contribui na construção de identidades e estruturas de mentalidades que ao longo dos tempos se naturalizam.

Entretanto, como as culturas não são autocontidas, quer os indivíduos, quer os grupos sociais, são ou deixam de ser membros de uma determinada cultura de acordo com um determinado tempo e espaço, mas que ao mesmo tempo, a identidade de cada pessoa é construída por uma multiplicidade de elementos uma vez que a aquisição da identidade nacional não significa a amputação de outros sentidos de pertença (ZAU, 2008, pp. 27-28), por isso, depois de 40 anos de idade, vivendo e convivendo a mais de 28 anos nas cidades de Água Branca e Maceió, carrego traços formativos do mundo rural, os quais me fazem feliz e orgulhoso, em certa medida, é por eles que insisto em acreditar nos humanos, mesmo sabendo que não posso e nem poderia ser o mesmo matuto dos anos de 1970 e 1980.

Não é muito difícil nos depararmos com situações desagradáveis em que um urbano pobre se refere a um rural, um matuto (muitas vezes até de condição financeira mais arranjada), com desprezo e insinuações de inferioridade. Isso pode está na memória da sociedade nacional e a escola junto aos meios de comunicação reproduzem incessantemente essas ideias na medida em que não conseguem transformar o São João ou as Festas Juninas como vida do campo num espaço humanizador. Isso pode não chegar a ser uma amputação dos sentidos de pertença, mas, são colocados em conflitos os valores formadores de identidades do rural com o urbano.

Ninguém pergunta ao matuto como ele se vê nas Festas Juninas ou como ele se sente uma vez que ridicularizados pelas escolas ou outros espaços que deveriam fazer justamente o contrário: para que as crianças rurais sentissem orgulhas de serem de matas e não o contrário. A escola, as instituições educativas e a mídia podem induzir a migração, quando aponta a cidade como único espaço para “humanização” e deixa de mostrar que na maioria das vezes, esses percursos podem nos transformar em matutos urbanos, favelados e violentados pela falta de acesso aos serviços públicos e de uma vida digna nas cidades.

Finalmente, devo dizer que, salvo atitudes isoladas, nas escolas e universidades por onde já estudei e trabalhei e em alguns programas televisivos, não vejo produzirem a valorização da cultura nesses espaços formativos, mas há uma grande dificuldade de perceber que valorizar não quer dizer desrespeitar o íntimo de outros seres humanos, que nesta perspectiva o individual e o coletivo na relação rural/urbano estão construindo identidades.

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade pode ser um lugar de lutas e de conflitos, mesmo que desiguais, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar. A construção de identidades passa sempre por um processo complexo ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal, é um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças (NÓVOA, 2000, P. 16).

A questão é que tipo de assimilação, de inovação e de mudanças a escola e a mídia estão produzindo na sociedade brasileira, mais especificamente na sociedade nordestina quando mostra as Festas Juninas como elementos centrais da cultura nacional de forma tão deplorável na veiculação da imagem do ser humano rural e matuto.

Talvez isso seja realmente muito complexo para ser discutido, mas me parece muito simples de ser entendido quando se é um matuto, que se reconhece como tal e que se vê em condições de vida desumana, mas ao mesmo tempo tem uma grande festa em sua homenagem.

Referências

NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, António (org.). Vidas de professores. 2ª ed. Porto Portugal, Porto editora, 2000.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 2ª ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.
ZAU, Filipe. Safáris ideológicos” e falsas teorias sociais: os casos do panafricanismo e da negritude, do lusotropicalismo e da crioulidade. In: CAVALCANTE, Maria Juraci; QUEIROZ, Zuleide Fernandes de, (orgs.). História da educação vitrais da memória: lugares, imagens e práticas culturais. Fortaleza, Edições UFC, 2008.

Uma resposta

  1. Ainda não tinha olhado as festas juninas dessa forma. Contudo, o historiador tem razão. Realmente há ações pejorativas. Sou militar, estou reformado, trabalhei muito no interior do Estado, e não me lembro dessa figura matuta a qual se retrata nas escolas e nos grupos de quadrilhas juninas. Está de parabéns.

SOBRE O AUTOR

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