Ela revela violência sexual e resolveu falar: ‘Precisei de 32 anos para me abrir’

Estupro, o que dói mais?

Jornalista Dulce Melo

Já não é mais torturante como antes. Os pensamentos intrusivos que me reportam àquele vestuário masculino do colégio interno ainda promovem choro. Mas, agora, o de uma mulher que se fez forte por obrigação com ela mesma, pela opção de não sucumbir porque descobriu que aquela dor poderia ser transformada em elemento de evolução. Não a que se anulou por tanto tempo, que havia perdido sensibilidades, que tinha um segredo sufocante e que, por vezes, a fez sentir nojo de si.

Já não dói mais como na tarde em que tive a boca tampada e de forma animalesca fui usada para satisfazer os desejos de um psicopata, mas estou viva, ainda bem que fiquei. Silenciei por décadas, meus pais e meu irmão sabiam, mas o que seria para a menina de uma cidadela a descoberta de que não era mais virgem aos 12 anos? Provavelmente trucidada por uma sociedade injusta, ou “justiceira”, que pune porque acha que deve sem se importar com a origem, as circunstâncias do fato. Nesse caso com a atrocidade sofrida. Mas, sete anos depois, todos tiveram a “honra” de saber da minha história por covardia de alguém que confiei e confidenciei minha dor e, como previsto, quase me crucificaram, muitas mães proibiram as filhas de andarem comigo “porque não era mais de nada”. Sofri. Novamente meus pais me colocaram no colo.

É preciso vestir armadura e combater as crueldades do passado, antes de se defender das sequelas no presente. Consegui chegar aqui, 45 anos depois, porque meus pais foram alicerce, deram suporte indispensável; amigos, porque foram afáveis, me ouviram e abraçaram sem me colocarem em nenhum momento na berlinda, sem me dirigirem qualquer acusação. E me blindaram. Ah…seu José Fernandes, semianalfabeto, do cabo da enxada, que medo tivemos da sua reação e que coisa linda é recordar a sua frase, ao chegar do sítio e receber a triste notícia: “Que maldade fizeram com essa menina. Não muda em nada, minha filha, olhe pra mim, continuo sendo o pai de sempre. Vamos lhe proteger”. Minha mãe jurou vir à Maceió, ir às secretarias de Educação e Segurança, queria acionar a imprensa, mas, apesar dos poucos anos, fiz um pedido: não, mamãe, lá tem meninas pobres que precisam estudar, se fecharem o colégio elas perdem tudo. Maria atendeu.

Eu era uma menina, colocada no colégio interno aos 10 anos porque havia concluído o primário com oito e em nossa cidade não tinha Ensino Fundamental, à época chamado Ginasial. Os transportes que levavam os estudantes para a cidade vizinha, União dos Palmares, eram caminhões paus de arara, a estrada era de barro e perigosa, e as boleias ocupadas por filhas e outros parentes dos proprietários (Antônio o Mano Correia), por sinal, primos do meu pai. Ninguém queria também se responsabilizar por uma criança. Estava ficando psicologicamente afetada porque já tinha perdido um ano e para preencher o tempo fui cursar Admissão, tido como um reforço do curso primário, digamos uma integração para o Ginasial.

Minha mãe pesquisou e encontrou um colégio de freiras, com boas referências, informou-se sobre o acesso às vagas e conseguiu a minha por meio da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Vibrei, vibramos, eu era a nova estudante do Colégio Bom Conselho, de Bebedouro. Uma unidade disputadíssima pela educação, disciplina, pela segurança. Mas a última falhou. O colégio era somente de meninas e em época de jogos internos os portões abertos ao público, logo a quadra era invadida por meninos e homens que tinham curiosidade em ver as equipes jogando com shortinhos/calça. Em um dia desses, aconteceu.

Não posso atirar pedras no antigo Asylo das Órphãs, seria leviana, porque a ele devo a evolução da minha estrutura em termos de aprendizado, já que o Grupo Escolar Manoel de Matos, lá em Santana do Mundaú, foi mentor de tudo isso, deu o pontapé nessa jornada. O Bom Conselho me preparou para a vida em muitos aspectos, principalmente a ser independente, pois aos 10 anos lavava e passava minhas roupas, tinha a obrigação de manter o cassiê (como chamavam a parte do guarda-roupa que nos disponibilizavam). Cada menina tinha um número que deveria ser marcado em todos os pertences, o meu 64.

Precisei de muito tempo, 32 anos para me abrir e começar a buscar uma reviravolta definitiva. Trabalhava em um site de notícias. Pautas no mural, mas no factual surgiu uma para cobrir a prisão de um estuprador que havia abusado da sobrinha de cinco anos , até a morte. Recebi constrangida, fiquei mal desde que me deram a incumbência, passei o caminho todo em silêncio porque minha mente me transportou para o dia em que fui vítima e tentava me imaginar diante do criminoso, na reação que teria. Mas precisava ser, antes de tudo, profissional. Ocorre que fui traída pelo emocional e assim que o policial o mostrou, franzino, com “cara de santo”, sentado perto da parede, dirigi-me a ele e inesperadamente uma fúria me tomou. Desgraçado, miserável, como é que você teve capacidade de estuprar a criança, ainda sendo sua sobrinha? Disse-lhe, acompanhando de um soco no rosto. Todos ficaram inertes e eu caí no choro, a delegada saiu e me levou para a sala dela, perguntou a razão e, pedindo desculpas, relatei. Fui compreendida, não criticada.

Nesse ínterim, era preciso ser sincera e falar com meu chefe, revelar tudo e dizer que não tinha condição de cobrir aqueles tipos de demandas, porque ainda não estava preparada. E aqui quero agradecer ao meu eterno chefe e amigo, como o chamo, Marcos Marabá, que foi muito humano e solidário naquela hora.

Posso garantir, melhorei muito depois de chegar ao Ministério Público, participar de campanhas para o enfrentamento a esse tipo de violência é ímpar, mas me fortaleço quando acompanho júris e vejo os monstros sendo condenados (sim, são monstros ), as lágrimas escorrem de alegria. Não posso dizer que falo com tranquilidade sobre o assunto, seria hipocrisia, mas já falo, já paro para ouvir as histórias dolorosas de outras pessoas, já consigo ajudá-las. Estou concluindo um livro sobre estupro no Brasil, com recorte principal para Alagoas, cujo título é: Estupro, a dor que rasga a alma.

Porque, como nele me expresso:

É como morrer naquela hora.

* Jornalista Dulce Melo

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