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Abuso de autoridade mostra Brasil real por debaixo dos panos

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Primeira lei do abuso de autoridade foi assinada por presidente Castelo Branco em 9/12/1965. E nunca foi obedecida

Suspenso (pelo menos por enquanto), o projeto de lei do abuso de autoridade- aprovado pela Câmara dos Deputados e hoje no Senado- divide opiniões e pôs integrantes do Ministério Público e Judiciário nas ruas e no Congresso Nacional.

O projeto seria aprovado pelo Senado na terça (6). Foi suspenso após decisão do ministro Marco Aurélio Mello de retirar Renan Calheiros (PMDB) do comando do Senado e, horas depois, o próprio senador decidir não seguir orientação do STF.

Voltou à pauta nesta quarta-feira (15). Nova pressão, foi retirado mas não banido: Renan encaminhou para a Comissão de Constituição e Justiça do Senado

O projeto é defendido pelo próprio Renan. Números levantados por ele no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que, em 2015, foram registrados pelo país 10.038 casos de abuso de poder, 10.047 de abuso de autoridade, além de outros 1.137 casos de exercício arbitrário.

“São 21.492 registros envolvendo excesso de autoridade em todas as instâncias. Se incluirmos a carteirada e o célebre “sabe com quem está falando”, haveria um crescimento exponencial”, disse Renan.

Apesar da defesa de Renan, o projeto sobre abuso de autoridade, originalmente, não é dele.

Ditadura
O Brasil tem uma lei de abuso de autoridade, a de número 4.898, de 9 de dezembro de 1965- um ano após a implantação do golpe militar no país. Assinada pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, nem ela mesma era praticada por quem a assinou.

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Renan Calheiros tentou levantar a “lebre” de uma nova lei sobre o abuso de autoridade e foi duramente criticado

No artigo 3º, por exemplo, a lei diz que é considerado abuso de autoridade a invasão de domicílio ou ainda qualquer atentado ao direito de reunião e ainda impedir a liberdade de locomoção.

No artigo 4ª, a lei do período militar considerava crime quem ordenasse ou executasse medida privativa da liberdade individual “sem as formalidades legais ou com abuso de poder” ou ainda “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.

A prática foi diferente, conforme registrou os relatórios da Comissão Nacional da Verdade.

Fim da ditadura, redemocratização do país. Ano: 2009. Raul Jungmann- hoje ministro da Defesa- apresentou uma lei de abuso de autoridade.

O projeto empacou, apesar de ser uma discussão envolvendo os três poderes da República.

Daí a proposta foi reapresentada por Renan Calheiros- em meio às investigações da Operação Lava Jato que, junto à lei anticorrupção aprofundou a crise política e gerou as manifestações do último final de semana.

Relator do projeto é o senador Roberto Requião (PMDB-PR).

O abuso de autoridade foi enxertado pelo plenário da Câmara dos Deputados, em votação no dia 30 de novembro.

Foi na contramão do apresentado pelo Ministério Público Federal e suas propostas de combate à corrupção.
Destas propostas, foram mantidas: “a tipificação do crime eleitoral de caixa dois, a criminalização do eleitor pela venda do voto e a transformação de corrupção que envolve valores superiores a 10 mil salários mínimos em crime hediondo”.

Opiniões diferentes
O consenso é único: o país precisa de uma lei que regule os casos de abuso de autoridade.
Mas, ao se discutir as minúcias da lei e como ela punir quem transgride suas normas, começam a surgir as divergências.

Professor de Direito Constitucional, Othoniel Pinheiro diz que o projeto original da lei previa dez medidas contra a corrupção. Foi apresentado pelo Ministério Público Federal.

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Othoniel Pinheiro, professor de Direito Constitucional: propsta do MPF era absurda

“O projeto original das 10 medidas era um absurdo sem tamanho. Algo de projeto de poder do Ministério Público”, critica o professor.

“O projeto [atual] não é este bicho-papão. Mas existem alguns conteúdos abertos em alguns dispositivos que podem dar margem ao juiz ser processado por qualquer coisa que ele faça. Mas, nada absurdo”, analisa.

Também professor de Direito, na área criminal, Leonardo de Moraes tem entendimento semelhante ao de Othoniel Pinheiro:

“Na verdade, o espírito do projeto de lei é válido, que é trazer a limitação de poder e evitar o julgamento moral. Ocorre que muitas das descrições do texto são genéricas, fica difícil saber o que é proibido e o que é permitido.Por exemplo, art. 8, IV – “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções;”. Traz expressões muito genéricas, pois não se sabe ao certo qual a conduta proibida”.

Opinião de ambos segue entendimento semelhante ao do Conselho Federal da OAB:

“Não temos dúvida quanto ao elevado espírito público da judicatura nacional, que, em seu conjunto, não reflete o comportamento sindicalista de alguns. Estes, agindo como atores políticos, mutilam a imagem da magistratura, transmitindo a nefasta ideia de que constituem casta intocável, imune à fiscalização da sociedade.”
Quando se vai em direção ao Ministério Público, as opiniões são diferentes.

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Sérgio Jucá, procurador-Geral do MP, defende lei de abuso, mas critia projeto de Renan Calheiros

O procurador-Geral de Justiça, Sérgio Jucá, explica que o projeto que tramita no Senado- vindo da Câmara- é um reflexo das investigações em todos os estados promovidas por promotores e procuradores de Justiça.

“Temos tido vitórias históricas contra a impunidade e a prática de atos de improbidade administrativa. O triunfo não é do Ministério Público, mas do povo alagoano, do povo brasileiro, que não suporta a corrupção desenfreada que ocorre em nosso Estado, em nosso País. O Ministério Público tem lutado bravamente durante os anos para punir os corruptos. Não podemos ficar calados. Não podemos permitir que nos calem. Lutamos em prol da sociedade”.

O promotor José Carlos Castro- coordenador do Fórum de Combate à Corrupção em Alagoas- aprofunda a discussão. E diz que, se a proposta atual passar pelo Senado “fere de morte” o combate à corrupção.

“Querem causar uma verdadeira lesão à democracia. Nós não podemos aceitar calados. Temos que falar, bradar em nome dos cidadãos, que serão os atingidos por não terem um Ministério Público e uma magistratura fortes e independentes. O combate à corrupção está ferido de morte. A intenção da Câmara com a aprovação é criminalizar as nossas atuações, quem investiga, quem processa e quem julga os corruptos. Mas não afeta só os juízes e promotores que trabalham diretamente no combate à corrupção, afeta a toda a sociedade”, explica.

Entendimento quase igual é o da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Que enxerga a atuação dos deputados e senadores ao projeto como uma forma de “amordaçar o Poder Judiciário”:

“Toda essa ofensiva demonstra o quanto, nesse momento de crise em que o Legislativo deveria ter como foco pautas relevantes para o Brasil como a discussão que propõe o fim do foro privilegiado, muitos priorizam formas de paralisar e amordaçar o Poder Judiciário, invalidando importantes operações de combate à corrupção e buscando caminhos para perpetuar os mesmos quadros e esquemas que saquearam o país”.

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Gustavo Pessoa, professor de História: ‘Juízes e membros do Ministério Público não estão acima da Lei’

Sociedade
Há legitimidade para o Congresso discutir uma lei de abuso de autoridade? E quando as discussões estão sob o manto da corrupção ou do conluio? A lei vale para todos?

Professor de História e analisando a prática do abuso de autoridade no país, Gustavo Pessoa diz que a ideia de discutir uma lei deste tipo não deve perturbar quem tem autoridade.

“O abuso de autoridade é uma prática que deve ser coibida e penso que ninguém pode estar imune a isso”, explica.

Por que?
Juízes e membros do Ministério Público não estão acima da Lei. A corrupção deve ser combatida mas isso não pode ser feito acima da lei.Que mensagem estamos passando para sociedade? Que podemos combater crimes praticando crimes? Sabemos o que acontece quando abrimos mão do estado de direito.

O quê falta ao projeto?
Tipificarmos de forma clara o que seria o “abuso de poder” sob pena de inviabilizarmos operações investigativas que são fundamentais para caminharmos em direção a uma sociedade mais transparente.

O quê preocupa?
Um sentimento de canonização de agentes públicos como o juiz Sergio Moro e me preocupa mais ainda perceber que alguns desses agentes atuam para estimular esse sentimento. Isso bestializa a sociedade e criminaliza a política. Precisamos de um poder judiciário transparente e atuante e não de um comitê de salvação nacional.

A crise institucional pode retardar (ou acelerar) as discussões sobre o abuso de autoridade.

Ou o império da lei pode fazer o abuso de autoridade cair fora da pauta em Brasília.

SOBRE O AUTOR

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