A idade de ouro do gás

Essa revolução tem um nome: "fraturamento hidráulico", coloquialmente conhecido, em inglês, como "hydrofracking" ou apenas "fracking"

Martin Wolf – editor e principal comentarista econômico do FT-Valor Econômico

O mundo está em meio a uma revolução do gás  natural. Até mesmo a sóbria Agência Internacional de Energia (AIE)  refere-se a um cenário denomina “idade de ouro do gás”. Se tal otimismo  revelar-se correto, as implicações seriam não só muito maiores do que as  de uma dissolução dolorosa da zona do euro, mas também economicamente  positivas. Nunca nos esqueçamos de que nossa civilização baseia-se em  fontes baratas de energia comercial. O crescimento econômico dos países  emergentes fará a demanda por energia comercial crescer enormemente nas  próximas décadas. O gás é relevante.

Essa revolução tem um nome:  “fraturamento hidráulico”, coloquialmente conhecido, em inglês, como  “hydrofracking” ou apenas “fracking”. Como aconteceu em quase todas as  revoluções tecnológicas do século passado, essa também originou-se nos  EUA. A Administração de Informações Energéticas dos EUA explica que “o  uso de perfuração horizontal em associação com o fraturamento hidráulico  ampliou a capacidade dos produtores de extrair gás natural de formações  geológicas de baixa permeabilidade, em particular formações de xisto”  *.

Embora algumas inovações datem da década de 1970, a AIE afirma  que “o advento da produção do gás de xisto em larga escala não ocorreu  até que a Mitchell Energy and Development Corporation tentasse, durante  os anos 1980 e 1990, tornar a produção de gás de xisto profundo uma  realidade comercial em Barnett Shale, no centro-setentrional do Texas”.  Mas hoje, acrescenta a AIE, “a extração de gás de xisto mudou o cenário  do mercado de gás natural nos EUA”.

A nova atividade incrementou a  produção de gás de xisto seco nos EUA de 0,39 trilhões de pés cúbicos  em 2000 para 4,8 trilhões de pés cúbicos em 2010, ou 23% da produção  seca de gás nos EUA. E muito, muito mais, está por vir. A EIA estima  haver 860 trilhões de pés cúbicos de gás de xisto “tecnicamente  recuperáveis” nos EUA, contra apenas 273 trilhões de pés cúbicos nas  atuais “reservas comprovadas”. Se essa estimativa estiver correta,  apenas o gás de xisto supriria o consumo americano de gás durante 40  anos, com base no ritmo atual.

Qual a dimensão das reservas  mundiais de gás de xisto? A AIE pediu a consultores que examinassem 48  bacias de gás de xisto em 32 países. O relatório estima os recursos  “tecnicamente recuperáveis” de gás de xisto em todo o mundo em 6,6  quatrilhões de pés cúbicos, volume aproximadamente igual às atuais  reservas comprovadas. As maiores reservas identificadas, além das  localizadas nos EUA, estão na China (1,275 quatrilhões de pés cúbicos),  Argentina (774 trilhões), México (681 trilhões), África do Sul (485  trilhões), Canadá (388 trilhões), Líbia (290 trilhões), Argélia (231  trilhões), Brasil (226 trilhões), Polônia (187 trilhões) e França (180  trilhões). Regiões excluídas dessa análise incluem a Rússia, Ásia  Central, Oriente Médio, Sudeste Asiático e África Central. O potencial  mundial deve ser ainda muito maior.

Que diferença poderá a  abundância de gás natural (inclusive a de gás mais convencional) fazer  para o futuro energético mundial? Em seu World Energy Outlook 2011, a  AIE comenta que “em todos os cenários analisados,,, o gás natural tem  uma participação maior no mix mundial de energia em 2035 do que hoje”.  Segundo o cenário de sua “idade do ouro”, a demanda de gás crescerá 2%  ao ano entre 2009 e 2035. Mesmo em um cenário mais cauteloso, referido  como “novas políticas”, a previsão de crescimento da demanda é de 1,7%  ao ano, ou um total de 55% durante esse período. Como resultado, o gás  substituirá outros combustíveis, particularmente em geração de  eletricidade e aquecimento. Ele também tem grande potencial como  combustível para os transportes. No geral, argumenta a BP em seu mais  recente “Energy Outlook” (panorama energético), em torno de 2030, o gás  poderá vir a rivalizar com o carvão e o petróleo como fonte de energia  primária.

A substituição do carvão ou petróleo por gás é desejável  do ponto de vista das emissões de gases estufa e muitos outros  poluentes. Por unidade de produção de energia, o gás emite pouco mais de  metade das emissões de dióxido de carbono do que o carvão e 70% das  emissões de CO2 originadas do petróleo. As emissões de monóxido de  carbono na queima de gás equivalem a 20% das emissões originadas do  carvão. As emissões de dióxido de enxofre e de partículas são  desprezíveis. Em qualquer cenário plausível visando controlar as  emissões de gases que provocam o efeito estufa, o gás natural terá que  substituir outros combustíveis, embora o desenvolvimento de técnicas  baratas de captura e armazenamento de carbono também poderão reforçar as  justificativas para o uso do carvão. Para a China, em especial, com seu  ônus poluidor devido ao uso de carvão, o gás parece fazer sentido.

Mas,  trará o gás de xisto a transformação benéfica que alegam seus  defensores? Talvez não. O aspecto controvertido dessa tecnologia é o  impacto sobre o ambiente. Em artigo publicado na edição de novembro da  “Scientific American”, Chris Mooney, que escreve sobre ciência, observa  que o “fraturamento horizontal exige enormes volumes de água e  substâncias químicas. Enormes lagoas ou tanques são também necessários  para armazenar o “refluxo de água” quimicamente poluído que retorna pelo  buraco perfurado, após os poços terem sido fraturados”. Um único eixo  perfurador lateral, requer entre 2 e 4 milhões de galões de água e 15 a  60 mil litros de produtos químicos. Não admira que os críticos aleguem  que a nova tecnologia ameaça poluir lençóis freáticos e seja, portanto,  um pesadelo ambiental. O artigo sugere não se saber, ainda, se tal  contaminação ocorreu. Nessa fase, conclui, os riscos são incertos. As  atividades da nova indústria precisam ser rigorosamente monitoradas.

Se  é adequado seguir em frente rapidamente com essa tecnologia dependerá  de várias considerações: 1- os custos de oportunidade locais da água; 2-  as competências e a confiabilidade dos operadores; 3 – a capacidade das  agências fiscalizadoras; 4 – os benefícios do eventual gás extra  obtido, em comparação com os benefícios de combustíveis alternativos (ou  da conservação), inclusive para a segurança; 5 – melhor conhecimento do  impacto das tecnologias. Para dar um exemplo, a competição da demanda  por água e os perigos da poluição poderão tornar perigosa a extração em  larga escala de gás de xisto na China.

O gás de xisto evidencia a  engenhosidade dos envolvidos na descoberta de novas fontes de energia.  Também sugere a bem-vinda possibilidade de obter gás natural barato por  muitas décadas. Mas essa revolução poderá revelar-se um pacto faustiano.  É preciso cuidado em como – e quão rapidamente – a tecnologia poderá  ser adotada: os custos ambientais podem revelar-se pesados. “Apressa-te  lentamente”, como os antigos romanos costumavam dizer.

* World  Shale Gas Resources: An Initial Assessment of 14 Regions Outside the  United States (Recursos de gás de xisto no mundo: uma estimativa inicial  de 14 regiões fora dos EUA, 5 de abril de 2011, www.eia.gov. (Tradução  de Sergio Blum)

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