ONU: impunidade por tortura nas prisões é regra no Brasil

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Foto: Ilustração
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A impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos se tornou a regra – e não a exceção – no sistema penitenciário brasileiro, afirmou o representante regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra, em entrevista por e-mail a EXAME.com.

Incalcaterra disse que o clima de impunidade nas prisões do Brasil “alimenta a continuação de violações de direitos humanos nas prisões”. “A tortura é generalizada desde o momento da detenção, durante interrogatórios e em presídios”, disse o representante do ACNUDH.

Além disso, ele afirmou ainda que dados sobre a incidência de tortura e tratamento cruel de pessoas privadas de liberdade não estão disponíveis no Brasil. “A falta de esforços consistentes para documentar e investigar, processar e castigar delitos de tortura e mortes em presídios vão contra as disposições da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, da qual o Brasil é parte”, disse Incalcaterra.

Ele fez duras críticas à forma como o Brasil vem historicamente tratando a questão e cobrou medidas das autoridades brasileiras que de fato tenham impacto para melhorar as prisões no país.“O Brasil precisa enfrentar a crise do sistema prisional, que vem de longa data, através de políticas públicas e legislação em linha com os padrões internacionais”, afirmou.

Em novembro do ano passado, o Subcomitê sobre a Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT), composto por especialistas da ONU, entregou ao governo brasileiro um relatório sobre violações de direitos e tortura praticados em presídios brasileiros. O documento é resultado de uma visita realizada pelo SPT a 22 locais de detenção no Rio de Janeiro, Manaus, Recife e Brasília, entre 19 e 30 de outubro de 2015.

No relatório, os especialistas alertaram o Brasil sobre a gravidade dos casos violência nos presídios e o risco de novas rebeliões. Entre as unidades visitadas, estava o Complexo Penitenciário Anísio Jobim, local onde ocorreu a primeira rebelião de presos neste ano, que culminou com a morte de 56 presos.

Segundo Incalcaterra, o Brasil tem até maio para dar uma resposta ao subcomitê explicando quais ações serão tomadas para implantar as recomendações do órgão. “A superlotação dos presídios, o déficit de vagas, casos de tortura e rebeliões, o controle feito pelo crime organizado e a política de encarceramento são alguns dos principais pontos que o Brasil precisa enfrentar neste contexto”, explicou.

Veja a entrevista completa com o representante regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos:

EXAME.COM: O Subcomitê sobre a Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT) da ONU entregou no fim do ano passado um relatório ao Ministério da Justiça do Brasil sobre o que foi apurado em 22 prisões do país. Em qual prazo o Brasil deve implementar as recomendações do documento?

Amerigo Incalcaterra: No dia 24 de novembro de 2016, o SPT entregou às autoridades brasileiras o relatório sobre sua última missão ao país. A partir desta data, o Brasil tem um prazo de seis meses para prestar contas das ações estatais levadas a cabo com vistas à implementação de suas recomendações, prazo que expira em maio. Embora não haja um prazo específico para a implementação das recomendações do Subcomitê, a resposta ao relatório também deverá incluir informação detalhada sobre como o país se compromete a implementar essas recomendações.

 O documento aponta que a prática de tortura é frequente dentro dos presídios visitados. A ONU considera a violência nos presídios brasileiros como endêmica e generalizada?

Membros do SPT, assim como o Relator Especial [o advogado e jurista Juan Mendez] sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, puderam observar em suas visitas aos presídios no Brasil que a tortura é generalizada desde o momento da detenção, durante interrogatórios e em presídios.

Os especialistas ressaltaram que a tortura afeta de modo desproporcional pessoas de estratos sociais mais baixos, negros e minorias. No entanto, o relatório do SPT faz uma ressalva de que, enquanto o Brasil coleta dados sobre diferentes aspectos da população e sistema carcerários, informações sobre a incidência de tortura e tratamento cruel de pessoas privadas de liberdade não estão disponíveis.  Os especialistas também alertam que, por medo a represálias, detentos são frequentemente persuadidos a não denunciar casos de tortura e tratamento cruel.

Outro aspecto importante ressaltado é que a impunidade em casos de tortura por agentes públicos no Brasil continua sendo a regra, e não a exceção, o que contribui para que se crie um clima de impunidade que alimenta a continuação de violações de direitos humanos.

Medidas tais como a pronta investigação de mortes por agentes estatais, capacitação profissional em direitos humanos, a adoção de protocolos oficiais sobre o uso da força da polícia, a revisão dos salários da força policial, garantir a independência dos Institutos Médicos Legais e um controle eficaz de empresas privadas envolvidas na administração de funções policiais são algumas das medidas propostas pelos especialistas para combater a prática da tortura no Brasil.

Quais foram as práticas de tortura e violações de direitos humanos encontradas pelo subcomitê nos presídios visitados?

O SPT constatou que a superlotação endêmica, as condições chocantes de detenção, os problemas de assistência médica aos presos, a falta de acesso à educação, a violência generalizada entre detentos e a falta de supervisão adequada dos presos (o que leva à impunidade) são alguns dos problemas principais ainda não resolvidos pelo Brasil para enfrentar a crise prisional e combater a tortura nos presídios.

Em suas visitas a diferentes delegacias, prisões, centros de detenção provisória, instalações para adolescentes e hospitais penitenciários, o Subcomitê encontrou uma atmosfera geral de intimidação e repressão.

Relatos de detentos sujeitando outros detentos à tortura e facções criminosas com significante controle de certos presídios são frequentes, segundo esses especialistas internacionais. O SPT e o relator especial receberam relatos de prática de tortura e tratamento degradante e cruel durante apreensões e em presídios que envolvem o uso de choques elétricos, balas de borracha, sufocamento, espancamento com barras de ferro e palmatória, técnicas conhecidas como telefone – que consiste em dar golpes na orelha da vítima – e o pau arara. Segundo ressaltou o relator especial, o objetivo desses atos seria obter uma confissão, pagamento de suborno, ou uma forma de castigo ou intimidação.

O relatório da ONU aponta ainda que metade dos 565 presos mortos em 2014 no Brasil foi assassinada. O Brasil tem fechado os olhos para os assassinatos dentro das prisões?

É importante notar que os dados de 2014 são seis vezes maiores que os dados de 2013 e que, como bem aponta o SPT em seu informe, aproximadamente metade dos 565 indivíduos que morrem enquanto privados de liberdade foram mortos intencionalmente.

A falta de esforços consistentes para documentar e investigar, processar e castigar delitos de tortura e mortes em presídios vão contra as disposições da Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, da qual o Brasil é parte.

De acordo com os artigos 12 e 13 de referida Convenção, o Estado deverá assegurar que suas autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial, sempre que houver motivos razoáveis para crer que um ato de tortura tenha sido cometido em qualquer território sob sua jurisdição.

Além disso, a falta de investigação no Brasil leva ao aumento da cultura da violência e da impunidade?

Exatamente, como já havia alertado o relator especial contra a tortura, o que institucionalizou a tortura é a continuidade do ciclo de impunidade em relação a essa prática.

Essas violações frequentes de direitos humanos nos presídios estimulam o crescimento das facções criminosas brasileiras dentro das cadeias?

As facções criminosas têm ganhado força pela falta de controle do Estado dentro das cadeias, tendo ramificações praticamente em todos os estados da federação.

Os altos níveis de superlotação e em geral as condições de detenção que relataram os especialistas alimentam a violência e as violações de direitos humanos no contexto penitenciário. O Sub-comitê comentou, por exemplo, que a superlotação exacerba os níveis de estresse nos detentos, o que resulta em comportamentos agressivos e um risco maior de violência entre detentos e também contra os funcionários.

Nesse sentido, o Sub-comitê recomendou ao Brasil aumentar a dotação de agentes penitenciários adequadamente treinados, além de profissionais médicos, para garantir a segurança dos detentos e dos funcionários, bem como para reduzir a influência do crime organizado no interior das prisões.

O que a ONU recomenda para as autoridades brasileiras? O que precisa ser feito?

A crise do sistema prisional no Brasil requer um forte compromisso político do mais alto nível de governança. O Brasil precisa enfrentar a crise do sistema prisional, que vem de longa data, através de políticas públicas e legislação em linha com os padrões  internacionais.

As recomendações do SPT, do relator especial, e de outros mecanismos de proteção regional e universal de direitos humanos oferecem um sólido guia para a formulação de tais políticas. A superlotação dos presídios, o déficit de vagas, casos de tortura e rebeliões, o controle feito pelo crime organizado e a política de encarceramento são alguns dos principais pontos que o Brasil precisa enfrentar neste contexto.

O Brasil conta com um sistema de combate e prevenção à tortura, que inclui o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o que foi reconhecido como um desenvolvimento positivo pelos peritos do Sub-comitê. Alguns estados do país já criaram mecanismos preventivos contra a tortura, e os governos estaduais que ainda não o fizeram também devem estabelecer esse tipo de mecanismo.

Mas não basta apenas com criar este tipo de órgão: eles devem ser implementados efetivamente e as autoridades devem garantir sua autonomia operacional e independência, bem como recursos adequados, para que seu trabalho de fiscalização possa ter um impacto verdadeiro para o melhoramento do sistema penitenciário do Brasil.

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