O papel construtivo das crises

A principal fonte de desequilíbrios fiscais na Europa são os generosos programas sociais criados no pós-guerra, quando a indústria mundial, então concentrada na Europa e nos EUA, podia arcar com a alta carga tributária requerida para sustentá-los

Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso- professores do pós graduação da Escola de Economia da Fundação  Getulio Vargas (EPGE-FGV)-Valor Econômico

A crise das dívidas europeias ilustra como as  democracias necessitam de crises para tomar decisões impopulares. Itália  e Espanha estão aprovando cortes estruturais de despesas, bem como  enfrentando lobbies que emperram o funcionamento de muitos setores.  Portugal segue lentamente na mesma direção. Até a Grécia inicia um  movimento, embora a gravidade de seu problema sugira que talvez já seja  tarde demais.

A principal fonte de desequilíbrios fiscais na  Europa são os generosos programas sociais criados no pós-guerra, quando a  indústria mundial, então concentrada na Europa e nos EUA, podia arcar  com a alta carga tributária requerida para sustentá-los. Atualmente, as  populosas economias asiáticas empregam na indústria exportadora uma mão  de obra de baixíssima remuneração, o que implica custos de produção  muito inferiores aos europeus. Para sobreviver aos novos competidores, a  carga tributária sobre a indústria europeia teria que cair. Mas isso  exigiria a redução do custo dos programas sociais. O enfrentamento do  problema foi adiado por sucessivos governos, provocando aumento das  dívidas. A crise atual resulta da incapacidade dos políticos europeus em  negociar uma adaptação realista aos novos tempos.

Mas a crise  embute a própria solução dos problemas que ela traz à tona. A acumulação  de uma gigantesca dívida pública em tempo de paz decorre das  dificuldades de ação coletiva inerentes a regimes democráticos onde há  acirrada divergência política. Enquanto os partidos à esquerda não  aceitam reduções de gastos, os à direita não permitem aumentos de  impostos. Ambos sabem o que precisa ser feito para evitar a crise fiscal  futura, pois enfrentam as mesmas dificuldades quando se revezam no  poder. Mas o jogo político estimula os governos – tanto à esquerda  quanto à direita – a adiar medidas dolorosas. Se o partido que está no  poder implantar medidas corretivas estruturais, necessariamente penosas  no curto prazo, perderá as próximas eleições. Pior, o mesmo ajuste que o  afastará do poder permitirá à oposição vitoriosa receber um país  preparado para o crescimento, assim colhendo os frutos plantados por  quem perdeu as eleições – no Brasil, os ajustes estruturais implantados  durante o segundo governo FHC deram três mandatos presidenciais ao PT.

Proximidade do abismo catalisa o consenso político necessário para a aprovação dos ajustes longamente adiados

O  jogo de empurra chega a um impasse quando os mercados começam a  desconfiar que, sem reformas, a dívida tornar-se-á impagável, passando a  exigir taxas de juros exorbitantes para a rolagem dos títulos públicos.  A proximidade do abismo catalisa o consenso político necessário para a  aprovação dos ajustes longamente adiados. Os políticos dos dois grupos  acabam votando medidas estruturais, pois podem salvar a face perante o  eleitorado jogando a culpa da decisão sobre um ator externo, seja o  mercado, o Fundo Monetário Internacional (FMI), ou o líder de um país  estrangeiro como Angela Merkel.

Mas há quem aprenda com a própria  experiência. A Alemanha, país derrotado em duas guerras no intervalo de  30 anos, e divido em dois por outros 45 anos de Guerra Fria, desenvolveu  instrumentos políticos de coordenação que permitem a tomada de decisões  preventivamente. Após a criação do euro, conscientes da rigidez nominal  imposta pelo câmbio fixo em relação a seus principais parceiros  comerciais, os líderes alemães coordenaram as disputas salariais de modo  a preservar a competitividade da indústria, bem como adaptaram seus  programas sociais à nova realidade internacional. Hoje colhem os frutos  dessa sábia decisão. A Grécia, ao contrário, aumentou salários e o  emprego público, e ampliou benefícios sociais cuja conta está sendo  cobrada agora.

No Brasil, após a maxidesvalorização cambial de  1999, o espectro da volta da inflação permitiu a FHC aprovar a Lei de  Responsabilidade Fiscal, bem como executar à risca os acordos de  renegociação das dívidas estaduais – a moratória mineira deixou à míngua  o governador Itamar Franco. Em 2003, sofrendo a desconfiança dos  mercados, Lula incrustou na Constituição o financiamento das  aposentadorias dos servidores por meio de fundos de pensão geridos em  regime de contribuição definida – projeto bombardeado pelos sindicatos  durante o governo FHC.

Após o advento do “mensalão”, entretanto,  um Lula enfraquecido buscou apoio político em sua velha base sindical,  abandonando seu ímpeto reformista – a regulamentação dos fundos de  pensão dos servidores ainda está no Congresso. A partir de 2004, a  bonança proporcionada pela disparada dos preços das commodities enterrou  de vez as reformas.

A recente decisão do governo Dilma de  transferir à iniciativa privada a gestão dos três maiores aeroportos do  país não foge à regra. Desta vez o catalisador das mudanças não foi uma  crise econômica, mas o temor de um grande vexame internacional durante a  Copa do Mundo e a Olimpíada. O pragmatismo de Dilma abandonou os dogmas  petistas que interromperam as privatizações durante os dois mandatos de  Lula. A necessidade está levando o PT a se parecer, cada vez mais, com  seus rivais.

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