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No contágio da escrita: o desjejum

A escrita compulsiva também nos limita a criação. Empolga demais este mergulho na indignação renovada a cada segundo, misturada com amargos presságios e análises isentas de otimismo.

Para escrever, precisei parar de escrever. E assim olhei ao redor em busca de paz e esperança, na terra da solidão que grita no megafone da igreja evangélica em seus cultos incessantes.

Eis meu país, cortado pela insana dor de sua ontologia da desigualdade gerando palco e vítimas voluntárias sobre as quais pisa o algoz.

Ser diminuto, de parco intelecto, de interior abjeto, elevado à potência de um presidente para lançar de cima a urina malsã que rega o fanatismo letal desta hora.

Sim, quem condena esta nação é a pobreza projetada, mantida, alimentada pela estranha fé que ensina o povo a desamar.

O cabresto da fome está sendo usado outra vez para manipular estes corpos acostumados com a morte.

Escrever qual raio de luar nesta noite de todas as horas? É cenário de silenciamento, golpes, ditaduras e ausência de lamentos; se o povo vai à rua é na contra-mão da luta e os que sabem lutar estão impedidos de sair para defender a vida.

De morte matada, morrerão os incautos celebrantes do desafio ao vírus por seguirem a voz da Presidência da República deste país.

De morte morrida serão afetados todos os que no front desta batalha invisível forem contagiados, porque o ar já está faltando aos pulmões da sociedade.

Estatísticas da letalidade em alta! Povo bolsonarista na praça. Entre eles rostos familiares zombando das angústias dos que ficam em casa preocupados.

Poderá a crença e a descrença fazer tanta diferença?

Acreditar em Bolsonaro é o mal deste fim de era que abraça os devidamente jejuados?

Acreditar na letalidade do vírus será bastante para nos proteger dos que vagam desgarrados?

Continua faltando nexo neste cenário complexo sobre os quais crescem elementos patéticos e instituições organizam outros tantos golpes.

É violência demais diante da retina. É dureza, arbitrariedade, crime contra a humanidade, mas virou rotina.

Não jejuarei. Se estou sendo obrigada a comer deste pão amassado pela incúria de quem votou e apoia Bolsonaro, fartarei minha mesa com volume imenso de desobediências, de fé na ciência, e amor à razão.

Lambuzo os sabores do sim em meu rosto de rebeldia quarentenada e escrevendo partilho esse desjejum amoroso, pela liberdade de ser parte desse povo que aguarda o fim da tragédia para saber como fará o recomeço.

Enquanto escrevo ouço as músicas de uma festa que ocorre na beirada da piscina de alguém.

Uma resposta

  1. Minha amiga, que não silenciamos, se não podemos estar nas ruas, que possamos gritar e mostrar a nossa indignação e a compreensão de que um deus sem a luta pela igualdade e a justiça Social, é só um homem. Nos mantenhamos vigilantes e alertas, e que o Deus que habita o universo oportinize as nossas mentes a construção de lindos textos como este
    que vc escreveu, de verdades tristes e duras, mas é melhor endurecer que perder a ternura. Que estejamos juntos, e com a certeza que mesmo que a luta seja árdua a história nos mostra que é melhor estar do lado da fogueira que corromper-se.
    Gratidão, e força para não calar-se, pq aí eles terão vencido….

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