Marcelo Henrique: uma profunda crise

Marcelo Henrique

Neste 2020 tão imprevisível e surpreendente, parece-me que os abismos existenciais, individuais e coletivos estão mais claros, flagrantes. Em cada uma das relações sociais e conviviais, sejam as presenciais ou as virtuais, se aprofundam as dicotomias no pensar e algumas ideologias que jaziam esquecidas, talvez camufladas pelo “politicamente correto” e pela democracia em curso, voltaram a aparecer.

O fato é que o homem traduz nas exterioridades o que tem – e o que cultiva com apreço e interesse – em seu mais íntimo. Muitas vezes, em diferentes épocas, de modo dissimulado, o ser se expõe em pequenos comentários, gestos ou trejeitos da face, mas ainda se mantém contido, com receio de não encontrar eco ou ressonância em outrem. Mas, em tempos de proliferação do ódio e de valorização dos mitos do personalismo, baratos e passageiros, mas que incomodam (muito) enquanto estão em evidência, os homens mais equilibrados e éticos parecem se sentir deslocados em um mundo tão inóspito e desfavorável.

Neste contexto dramático, não-fictício, perigoso e violento, nem tudo está perdido. Vislumbra-se a coragem de um Bergoglio ou de um Lancelotti, que se expressam em nome dos que cultuam a esperança, permitindo-nos, novamente, um mergulho interior, no âmago de nosso ser espiritual e imortal, na busca de algo que seja super-humano, já que o humano parece sucumbir, dia a dia, ante tanta virulência e irracionalidade.

Lembremos que a palavra crise, em essência, de seus radicais latino e grego, não configura algo devastador e destruidor, como se imagina, a princípio, sobretudo da parte de quem esteja, momentânea ou permanentemente nela. Crise, no latim, corresponde a cada momento de decisão, ensejando uma mudança súbita, que pode ser a de requalificação e ressignificação, para vencer obstáculos ou desafios. No grego, em paralelo, corresponde ao momento para separar, julgar, decidir, ante dificuldades. Sua associação original, na Medicina dos homens, representava a evolução de uma enfermidade e os esforços para sua resolução. Se satisfatória, a cura; se em derrocada, a morte.

Crise é, assim, o espaço, a oportunidade de crescimento!

E a nossa crise, profunda, é de ESPIRITUALIDADE. Não aquela que seja, apenas, cultuada no âmago das religiões ou nas manifestações de nossa cultura, mas a que diz respeito à própria natureza humana, no descobrir e cultuar valores – muito além da mera fé ou crença, que também é necessária ao ser, logicamente – a preencher um enorme buraco existencial.

Mas não busquemos a espiritualidade em gurus (verdadeiros ou falsos) nem em mitos que a Humanidade construiu ao longo de tantos séculos. De maneira comum, todos os seres que palmilham o chão de nossa Terra têm suas limitações e defeitos, embora alguns suplantem ou superem tais deficiências, para inscrever seu nome na história de dadas civilizações ou povos. Quando desaparecem de nossas vistas, em função da derradeira morte, outros não raro se apropriam de seus legados e passam a construir uma atmosfera SEMPRE artificial, de romantização excessiva e dogmatismo crescente, transfigurando o homem em algo surreal e inexistente.

Os portadores permanentes da verdadeira espiritualidade são, em essência, pessoas até comuns, que vivem suas vidas sem glamour e sem um séquito de bajuladores – muito embora vários destes, ao perceberem algum ganho na proximidade, travestem-se em amigos para, durante algum tempo e, principalmente, no post morten do “guru”, ficarem como representantes, intérpretes ou “contadores de histórias” relacionadas ao personagem fictício construído e que será o bezerro de ouro da vez.

Do contrário, estes homens do povo, em sua humildade e simplicidade, apreciam a retidão da vida, o sentido maior da solidariedade, cultivando o Espírito (em verdade), no livre pensar e na prospectiva interpretação sobre os fatos e atos da vida.

Talvez esbarremos em muitos deles, sem perceber. Ou, então, horas após uma fortuita aproximação, nos caminhos da existência, retrospectivamente, nos damos conta de que estávamos próximos a um facho de luz e, talvez, o brilho nos tenha cegado, por instantes, tanto que não o enxergamos como tal. Não importa. Ficarão os seus exemplos…

A Espiritualidade, ao contrário do que muitos possam pensar, não exclui a materialidade. São, tais, complementares, faces necessárias de uma mesma moeda vivencial. Lembremo-nos do Carpinteiro que nos disse para estarmos NO mundo sem sermos DO mundo. Gosto muito de uma de suas (mais incompreensíveis) lições: “o que tem receberá mais e o que não tem, ainda, lhe será tirado”, como a simbolizar os tesouros que não pertencem às riquezas mundanas e, do contrário, refulgem no mais íntimo e, ao serem distribuídos aos demais, circunstantes, ao invés de serem extintas, se multiplicam.

Não quero, entretanto, ser piegas. Espiritualidade nada tem a ver com mediocridade ou fanatismo, construções da imperfeição espiritual humana, mas com o vencer-se a si mesmo (e vencer o mundo): veni, vidi, vinci, expressão atribuída ao César, Júlio, diante de uma grandiosa e épica vitória.

O locus social, então, é o dos indignados. Os que obram a redefinição de si mesmos, entre novos sentidos existenciais, não aceitando os “destinos” político-sociais em que somos “obrigados” a viver, pelas escolhas de uma minoria que se impõe, e pela coação de quase todos, ainda que travestidos sob o sufrágio de uma (aparente e frágil) democracia. Ainda há tempo…

Urge beber de outras fontes, procurar outras luzes e pintar horizontes que mais se assemelhem ao conteúdo da espiritualidade em ação, já que ela, inerte, é apenas expressão de contemplação religiosa, uma fase que a Humanidade precisa suplantar.

Finalizo, uma vez mais, com a alusão ao Pescador que abandonou o ofício de Carpinteiro: “Eu venci o mundo”, porque esta é a tarefa de cada um de nós, na busca da vivência permanente de ESPIRITUALIDADE, uma vez que se nos exige, o Espírito que somos cada um de nós, o deixar de agir como membro de um rebanho, para a conquista real da autonomia. Vencer o mundo (de violência e iniquidades) que é o cenário de todos, neste instante, é a tarefa!

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