Marcelo Henrique: As Utopias e sua ação transformadora

Marcelo Henrique

“Sem bárbaros o que será de nós?”
Konstantinos Kaváfis (1863-1933), no poema “À espera dos bárbaros”, considerado em 2000 como um dos 100 melhores poemas do século XX.

Apregoa-se o caráter de mutabilidade da espécie humana, o ser inteligente da Criação. Ele, em sua ânsia de conhecer, experimentar e saber, evolui e, por consequência, desencadeia o desenvolvimento de tudo quanto está a sua volta: seus semelhantes, seu habitat físico, e as estruturas organizacionais do mundo sócio-político.

Para mudar algo é preciso ousar. É preciso sonhar. É preciso viver. Sim, porque viver importa o inconformismo com o sistema posto, vigente, para construir novos paradigmas mais consentâneos com sua busca, suas metas, seus propósitos existenciais. Tal o campo propício para o desabrochar das Utopias.

Assim, surge a ideologia, como sistema de ideias (quer estejam ou não) condicionadas ao interesse de grupos ou a serviço da conservação do status ou controle social, fomentadoras do processo de transição entre as ideias (e as ações, delas decorrentes) antigas e as novas. Ela se presta à missão de, partindo da desconstrução de paradigmas vigentes, estar a serviço de uma estratégia de mudança. Ou, complementarmente, explica (ou tenta explicar e interpretar) passado e presente, ao passo em que é impulso e estímulo à construção do futuro. Tal é o conceito de ideologia em sentido estrito: a representação do imaginário social, dos desejos de mudanças possíveis, para cuja consecução valha a pena lutar. Utopias, destarte, reúnem inteligência e emoção, razão e sentimento – são projetos sociais de transformação e mudança (projeção da sociedade que deve ser).

Norberto Bobbio, a propósito, já havia enunciado que a ideologia: “é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade, consistindo num conjunto de juízos de valores relativos a tal realidade, juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula, e que têm o escopo de influírem sobre tal realidade” (“O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito”).

Marilena Chauí, que estudou a evolução histórica das ideologias, parte do conceito inicial da aquisição, pelo homem, de um conjunto de ideias calcadas sobre o próprio real, mas que, adiante e progressivamente, se transmuda para a relação do homem e de suas ideias em relação real com o real (“O que é ideologia”). Para ela, a sensibilidade humana percorre uma interessante trajetória que vai do querer (vontade), passa pelo julgar (razão) e pelo sentir (percepção) e alcança o recordar (memória), contribuindo para a formação de (todas as) nossas ideias. Estas ações são, então, fenômenos naturais a exprimirem a relação do indivíduo, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente.

A observação da filósofa brasileira remonta, pois, a Auguste Comte (“Curso de Filosofia Positiva”), que tratou da utopia como atividade científica e filosófica de estudo da formação das ideias, com sede na observação das relações homem-meio e ponto de partida nas sensações humanas. Concebeu, ele, a trajetória de transformação do Espírito humano, que passou por três fases, sucessivas e complementares: 1) fase fetichista ou teológica, em que os homens entendem e explicam a realidade através de ações divinas; 2) fase metafísica, com a explicação da realidade ocorrendo por meio de princípios gerais e abstratos; e, 3) fase positiva ou científica, em que os homens observam efetivamente a realidade, analisam os fatos, encontram as leis gerais e necessárias dos fenômenos naturais e humanos e elaboram uma ciência da sociedade (física social ou sociologia), a qual serve de fundamento positivo ou científico para a ação individual (moral) e para a ação coletiva (política). Esta é, pois, a etapa final do progresso humano.

No campo das ciências, físicas e tecnológicas, as Utopias acabam fracassando, pois o que é utopia em dado momento já não o é no seguinte, quando vira realidade, por meio dos experimentos e teses demonstradas. Mas, o que se precisa destacar é que vários dos motes das ideologias dos séculos precedentes acabaram por se constituir em realidade visível em tempos posteriores, embora não deixassem de ser consideradas como tais, naquelas épocas, em que eram, por assim dizer, utopias. O que ocorre hoje, na verdade, é que o tempo entre a projeção e a consumação de uma utopia diminuiu consideravelmente, fruto, é bem verdade do próprio desabrochar do Espírito humano, e da utilização em grande escala de seu potencial criativo, construtivo e modificador.

Forçoso, necessariamente, resgatar o peso conceitual da ideologia na obra de Marx (e Engels), enquadrando que não é apenas a consciência (de si mesmos) o traço distintivo entre homens e animais, mas, sim, o fato de que os primeiros produzem as oportunas condições para sua existência material e espiritual. Em complemento, a partir desta produção de condições, por meio do Direito, o Estado se legitima como algo legal, ou seja, o ‘Estado de direito’. Destarte, ocupa-se o Direito (ou as leis) em fazer com que a dominação não seja considerada uma violência, mas algo legal, somente sendo aceita por ser legalizada e não violenta, mas legítima para a Humanidade, isto é, como o justo e o bom. A ideologia, portanto, é promotora da substituição da realidade do Estado pela ideia do Estado, em que a se substitui a dominação de uma classe pela ideia (assaz utópica) de um interesse geral encarnado pelo Estado, na mesma proporção da substituição da realidade do Direito (que é falha, em função do uso das leis) pela ideia do Direito (idealmente). Transmuda-se, então, a representação da dominação, por meio das leis, de uma classe, para a representação dessas leis como sendo (utopicamente) legítimas, boas e válidas para todos (“A ideologia alemã”).

Novamente em nossos dias, a distinção entre sistemas abertos ou fechados (Marx, Bobbio, etc.) desemboca na dualidade entre as ideologias conservadora ou progressista. A progressista, assim, em face do debruce sobre a realidade atual, procede à avaliação desta, de modo crítico, propondo-se a influir sobre a mesma, já que ela não corresponde às aspirações sociais e, portanto, deve ser objeto de mudanças. A ideologia progressista, assim, influi de forma direta e marcante no imaginário social, permitindo a formação e o aperfeiçoamento da consciência jurídica da sociedade, arbitrando valores para as normas, as relações socias e as estruturas de poder, temas, aliás, de extrema relevância para a chamada Política Jurídica ou Política do Direito.

As Utopias devem deixar um espaço para as incertezas, que são próprias dos seres humanos e se distanciam das chamadas “certezas”, as quais, em realidade, estão fora de alcance na atual conjuntura. O Estado de Natureza hobbesiano revisitado (paz social), ou mesmo marxista (sem classes) ou sem repressões (Freud) são espécies de Utopias inalcançáveis, para permitir a necessária diferenciação entre o sistema (fechado) proposto por Marx, e um significado aberto para a ideologia, assim conceituado como o que permite, pelos valores e crenças, individuais e coletivos, interpretar e justificar ações próprias ou alheias, para a seleção de alternativas futuras.

É neste aspecto que as Utopias deixam de ser meras construções literárias para serem ressignificadas como estratégias político-sociais, para a transgressão dos modelos pré-estabelecidos, instituídos ou constituídos pelas sociedades precedentes, permitindo-se análise e síntese no sentido de corrigir e (re)criar a Política do Direito.

É notório, portanto, que estamos atribuindo ao político do Direito a possibilidade da contínua criação normativa de um mundo de relações que, fundamentado na Ética, venha ensejar beleza na convivência humana, atingindo questões essenciais que estejam ligadas à apreensão das necessidades materiais e espirituais do homem, com parcial correspondência ao ensinamento aristotélico da “Ética a Nicômaco”. Aristóteles, neste diapasão, já havia ensinado que teriam a mesma natureza o bem do indivíduo – fim da Ética – e o bem da polis – fim da Política – já que ambos consistem na virtude. Mas, a Política, para ele, é a ciência suprema, da qual a Ética é subalterna e mera propedêutica ou ciência preliminar.

Se a Ética é, em geral e inicialmente subjetiva, associada à Moral, individual e construída por cada Espírito, ela tende a ser uma atribuição valorativa firmada sobre uma dimensão que permite estabelecer, coletiva e prospectivamente, uma noção específica de Bem, construída sobre realidades concretas, no que, parcialmente, deixa de ser utopia. Eis porque se, teleologicamente, ela expressa valor(es), a Ética deve ser inseparável da razão ou dos critérios de medida, ordenando, na Política do Direito, as condutas humanas, isto é, equivalendo à teoria normativa da ação.

Bobbio, assim, reproduzindo o inglês Bentham, pilar do positivismo jurídico inglês, conclui sua análise, em que as Utopias se materializam e podem transformar cenários jus-político-sociais, a partir da Ética (coletivamente construída e fortalecida) como o complexo de regras segundo as quais o indivíduo pode obeter a própria utilidade do melhor modo. Para si e para os demais.

Por fim, o ser humano, como propôs Kant, é aquela estranha criatura que sempre indaga e que nunca está satisfeita com as respostas que dá. O finito – o mundo fenomênico – nunca responde satisfatoriamente a quem nasceu para o infinito! No infinito, as ações transformadoras das utopias são, também, infinitas…

***

À ESPERA DOS BÁRBAROS
Konstantinos Kaváfis

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Uma resposta

  1. Excelente reflexão, uma inteligente viagem realizada através de diversos pensadores e teóricos. Nos faz refletir bastante sobre a ação desempenhada pelo homem no mundo e em favor do mundo (sociedade).

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