Floresta diferente?

Um dos mais óbvios mecanismos de mercado são os pagamentos por serviços ambientais, sobretudo os associados à conservação da biodiversidade

André Meloni Nassar – O Estado de S. Paulo

Em época de concessão da administração de  aeroportos à iniciativa privada por um governo do PT, talvez se possa  ter a esperança de que este governo aceite abrir algumas portas para  formas mais modernas de gestão do patrimônio de biodiversidade existente  no Brasil. A ideia que apresento aqui é a seguinte: as florestas  existentes nas propriedades privadas não deveriam ser consideradas nas  políticas brasileiras de conservação da biodiversidade? Por acaso essas  florestas são deferentes em relação ao potencial de conservar flora e  fauna, das que estão em unidades de conservação (UCs) e reservas  indígenas – estas, sim, elegíveis para as metas?

Embora possa  parecer, essa proposta não é mera provocação, tampouco tem a intenção de  criticar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc). No  entanto, diante das mudanças que serão aprovadas nos sistemas de gestão  das florestas em propriedades privadas, caso o Congresso Nacional aprove  a reforma do Código Florestal, os mecanismos de mercado ganharão  relevância ante os tradicionais sistemas de comando e controle,  justificando, assim, essa proposta.

Um dos mais óbvios mecanismos  de mercado são os pagamentos por serviços ambientais, sobretudo os  associados à conservação da biodiversidade. Tornar as florestas em  propriedades privadas elegíveis para as políticas de conservação da  biodiversidade, dado um conjunto de condicionantes que explico a seguir,  significa reconhecer que elas também poderão receber pagamentos por  serviços ambientais quando estes se tornarem realidade no Brasil.

Contando  União, Estados e municípios, o Brasil tem cerca de 110 milhões de  hectares (ha) de reservas indígenas, 52 milhões de ha de UCs de proteção  integral, 55,8 milhões de ha de UCs de uso sustentável e 43,5 milhões  de ha de áreas de proteção ambiental (UCs de uso sustentável instituídas  em áreas privadas). Por outro lado, entre reservas legais (RLs) e áreas  de preservação permanente (APPs) conservadas – os dois instrumentos  definidos pelo Código Florestal que impõem a conservação nas  propriedades privadas -, tem-se ao redor de 250 milhões de ha. Ou seja,  as áreas privadas, mesmo considerando o enorme contingente de  propriedades que não está em conformidade com o código vigente, possuem  um montante de florestas equivalente ao total de áreas protegidas pelas  reservas indígenas e UCs instituídas pelo Snuc. Não há, portanto, como  negar a grande importância das florestas existentes em propriedades  privadas.

À luz das políticas brasileiras de conservação da  biodiversidade, as florestas em RLs e APPs são ignoradas. Apesar de o  Código Florestal prever que são áreas fundamentais para a conservação da  biodiversidade, na prática elas são reconhecidas somente como uma  obrigação imposta aos proprietários rurais. Com isso criamos, no Brasil,  uma separação concreta entre florestas com as mesmas funções ambientais  que, em razão do tipo de propriedade (pública ou privada), são tratadas  diferentemente. Partindo do princípio de que o objetivo é conservar a  biodiversidade, essa distinção não faz nenhum sentido.

Um exemplo  que confirma essa tese são as metas da Convenção sobre Diversidade  Biológica (CDB), tratado internacional que busca garantir níveis mínimos  de conservação da biodiversidade. Para a CDB, uma área protegida é  geograficamente delimitada e regulamentada para conservar a  biodiversidade. O mesmo conceito é adotado pela União Internacional para  a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).

A CDB  recomenda que as metas devem ser cumpridas por meio de sistemas em áreas  protegidas, bem como via “outras medidas especiais de conservação, e  integradas em paisagens terrestres e marinhas mais amplas”. No entanto, a  política brasileira reconhece como áreas protegidas elegíveis para  cumprir as metas da CDB apenas as UCs e terras indígenas. Se as APPs e  áreas de RL são protegidas pelo Código Florestal, como uma restrição à  propriedade da terra que visa a conservar a biodiversidade, uma vez  efetivamente preservadas, devem contar para as metas brasileiras de  proteger ao menos 17% de cada bioma até 2020.

Não estou,  evidentemente, defendendo a inclusão de todas as florestas em RLs e  APPs. Aliás, se fosse assim, o Brasil já estaria cumprindo as metas da  CDB em cada um dos biomas encontrados em nosso território. É preciso  estabelecer critérios.

Considerando a relevância das APPs para a  conservação da biodiversidade, proteção do solo e da água, entre outros  serviços ambientais, essas áreas, desde que incluídas no Cadastro  Ambiental Rural (CAR), deveriam contar para as metas brasileiras.

O  segundo critério se aplicaria às RLs. Se UCs são elegíveis para as  metas de conservação de biodiversidade, isso significa que maciços  florestais são preferíveis a fragmentos. Isso me leva a propor que  grandes áreas de RLs deveriam também ser elegíveis – o que estimularia  os proprietários de terra a conservar extensões grandes ou, aprovado o  novo Código Florestal, a compensar RLs em grandes maciços.

Um  terceiro critério para dar elegibilidade às RLs seria o seguinte:  florestas em RLs que adensam APPs e estabelecem corredores ecológicos  dentro e entre as propriedades também ganhariam status diferenciado.  Este critério e o anterior poderiam ser aplicados em conjunto.

Em  minha opinião, está passando da hora de derrubarmos esse conceito de  separar as florestas entre as que têm valor para a biodiversidade – e  por isso são reconhecidas nas políticas de conservação – e as que não o  têm, às quais sobra a proteção pela obrigação. Sendo as florestas em  áreas privadas em nada diferentes em termos de conservação de fauna e  flora das demais florestas, esse serviço ambiental não deveria ser  ignorado, como sempre foi até hoje.

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