Europa diz adeus à solidariedade

Nova semana, mais um curativo. O acordo para dar sustentação à Grécia comprou mais algum tempo. O importante - ou assim somos levados a crer - é que a ferida foi cauterizada

Philip Stephens – editor e comentarista político do FT- Valor Econômico

Algumas palavras são propriedade dos europeus  continentais. Não costumamos ouvir muitos britânicos ou americanos  falando sobre “solidariedade”. A expressão pertence ao “meloso” (para as  mentes anglo-saxãs) consensualismo de capitalismo de mercado social e  aos profetas da unidade europeia. O que aconteceu recentemente é que a  solidariedade se dissolveu. Isso explica por que o euro, e a União  Europeia, estão emaranhados em tantos problemas.

Nova semana, mais  um curativo. O acordo para dar sustentação à Grécia comprou mais algum  tempo. O importante – ou assim somos levados a crer – é que a ferida foi  cauterizada. Mais uma vez. No entanto, deve ser ululantemente óbvio  para todos que, no grande esquema de coisas, a mais recente operação de  salvamento é um evento secundário.

Duas coisas são necessárias  para que a Grécia evite um catastrófico colapso econômico e social. Elas  são relevantes tanto se os gregos continuarem usando ou deixarem de  usar o euro. A primeira é vontade política suficiente na própria Grécia  para reformar radicalmente o Estado e a economia; a segunda é uma  disposição recíproca dos outros europeus para pagar uma conta  considerável pelas falhas e fraudes de recentes governos gregos.

A  questão pertinente é saber se tal barganha é possível. Os sinais não  são encorajadores. Por trás dos xingamentos que marcam a relação da  Grécia com os seus parceiros da zona do euro há um colapso total de  confiança. Muitos europeus – e não estou falando apenas de alemães – não  acreditam que os políticos em Atenas cumprirão suas promessas; muitos  gregos pensam que a austeridade draconiana cobrada como preço do alívio  da dívida foi calculada para punir, em vez de reabilitar. Um observador  imparcial provavelmente diria que ambos os lados têm alguma razão.

Em  determinado nível, a Grécia pode ser vista como exceção. A Grécia é  pequena e diferente. Em maior ou menor grau, os outros países na  periferia da zona do euro aproveitaram a oportunidade apresentada pela  UE para se tornarem modernos Estados europeus. A Irlanda, apesar de  todos os seus problemas atuais, floresceu como nação autoconfiante  libertada de uma obsessão histórica com o Reino Unido. A Espanha abraçou  a modernidade com entusiasmo. Os políticos gregos nunca realmente se  importaram. Do ponto de vista ateniense, a atividade da UE foi uma fonte  de dinheiro, em vez de inspiração política.

Portugal tem se  modernizado com lentidão. Sua economia, como a da Grécia, é uma bela  bagunça. Mas seus políticos demonstram uma vontade comprovável de  recuperação. Portanto, o reservatório de confiança não foi esgotado. As  autoridades econômicas em Bruxelas e Berlim colocam Grécia e Portugal em  categorias bem distintas.

Estabelecer essa linha divisória não é  tão fácil quanto gostariam esses políticos e autoridades. A razão pela  qual a Grécia assumiu tal importância – afinal, os gregos respondem por  apenas alguns pontos percentuais do PIB da zona do euro -, é porque as  autoridades econômicas permitiram que os gregos fizessem declarações  grandiosas sobre o futuro da zona do euro. O contágio não é um fato  econômico, mas um produto da política.

Se os mercados tivessem  sido persuadidos de que a Grécia é realmente uma exceção, os gregos  poderiam ter sido postos em quarentena já há algum tempo. Em vez disso, a  Grécia passou a ser vista como um teste mais amplo de intenção política  – um teste, se quiser o leitor, da solidariedade na zona do euro.

Há  dois tipos de solidariedade, como um ilustrativo estudo do Notre  Europe, um think-tank parisiense, observou recentemente. Há o simples  arranjo transacional – uma apólice de seguro comum contra a  possibilidade dessa ou aquela calamidade – e há o autointeresse  esclarecido que leva governos a identificarem objetivos nacionais numa  estratégia compartilhada e sustentada de integração.

A União  Europeia foi construída com base no segundo tipo. Foi relativamente  fácil, uns 60 anos atrás. Os horrores de duas guerras mundiais, a ameaça  comum da União Soviética e a insistência dos EUA proveram uma lógica  irresistível ao que os pais fundadores denominaram processo de  construção europeia.

Solidariedade não era a noção sentimental de  sonhadores federalistas. Era parte do cálculo objetivo de interesses.  Esse conceito permitiu que a França reivindicasse liderança política e a  Alemanha reconstruísse sua economia e mantivesse viva a perspectiva de  reunificação, ao passo que a Itália poderia aspirar à modernidade e  Estados menores poderiam ter voz nos assuntos do Continente. Claro,  solidariedade também pôde dizer respeito a um altruísmo elevado que fez  as pessoas sentirem-se bem com si mesmas – mas, na raiz, tudo tinha a  ver com autointeresse.

A moeda única era a expressão máxima desse  casamento de interesses nacionais e mútuos – a crença em que o futuro  econômico e político de seus membros eram tão inextrincavelmente  interligados que valia a pena estabelecer uma “conta conjunta” inédita  de soberania. O enorme infortúnio do projeto foi ser inaugurado apenas  quando a maioria dos outros impulsos de solidariedade – memórias da  Segunda Guerra Mundial, a ameaça existencial do comunismo, uma Alemanha  dividida – estavam se desvanecendo.

Há ainda uma abundância de  razões pelas quais seria vantajoso que as nações europeias operassem em  conjunto. A mais evidente é a necessidade de uma voz num mundo que  pertence cada vez mais a outro. Alemanha, França, Reino Unido, todos são  pequenos demais para esse mundo. Entretanto, por mais importantes que  sejam, nenhuma dessas ambições – moldar regras comerciais, combater  alterações climáticas, assegurar suprimentos energéticos ou promover  democracia e estabilidade parecem tão necessários ou urgentes quanto a  preservação da paz europeia.

Até onde ficou evidenciada  solidariedade na crise do euro, foi do tipo transacional, de soma zero:  os países credores só farão X se os devedores fizerem Y. Pode-se dizer  que isso é melhor que nada. Até agora, isso manteve o espetáculo em  cartaz. Mas nunca explicará adequadamente por que os contribuintes  setentrionais devem pagar as dívidas dos meridionais, ou por que os  sulistas deveriam encarar as reformas dolorosas como oportunidade e não  punição. Isso exige um outro tipo de solidariedade. (Tradução de Sergio  Blum)

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