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Crônica da tragédia anunciada: Matriz e as águas

Cresci vendo a naturalidade com a qual o povo da cidade onde morava lidava com enchentes periódicas. Tudo posto nas mãos de Deus e da natureza, dando sequência à simbiose das tragédias sociais avalizadas pela criação do divino justificador e sua natureza punitiva.

Deus que sempre foi usado para punir sofredores, às vezes parecia brincar com os nervos das pessoas, mandando uma chuva fina que parecia não molhar para amolecer as barreiras e encharcar os vales, caindo sem parar, sem parar, sem parar. Logo depois uma enxurrada descia do céu chumbado, anunciando as primeiras visões prateadas, a visão das águas.

Já se sabia quais partes encheriam primeiro. Corre para salvar os porcos, cavalos, bodes e ovelhas! Ajuda a carregar as roupas, atrepar as cadeiras, e cuida de não deixar molhar os documentos! Era a vida do povo, era a margem do rio e das lagoas, era o descaso político que renderia sobre as enfermidades e fomes mais dinheiro para os cofres furados que nunca mostravam ao certo para onde iria e satisfazia o pires na mão que o poder estendia.

Enchente sempre foi evento avisado. Sempre serviu para maltratar o maltratado e enriquecer o enriquecido.

2020: pandemia de coronavírus.

Medo da enchente desalojar essa pobreza que não desiste de existir e contemplar impotente a aglomeração da miséria de sempre em colégios, na estrutura decadente com a qual se amontoam estas gentes, só que agora com o risco eminente de contágio.

Todas as histórias mau alinhavadas em noções de civilidade pelo justificado peso das necessidades, estão a espreitar as águas.

Elas já anunciaram alagamento. Já tomaram conta de parte do território. Pode ser que amanhã a tragédia se confirme, pode ser que não ocorra agora, a única certeza que temos é que nada foi feito para prevenir danos sociais causados por enchentes (apesar das histórias) a não ser comprometer as áreas de vazante com construções criminosas financiadas com dinheiro público.

Sim, nunca foi Deus punindo a pobreza. Sempre foi a política roubando a razão e a pertença para transformar tudo em opressão e dano histórico.

Temos o contágio se alastrando, as águas se aproximando e o poder público esperando a calamidade pública com o pires na mão.

Você sabe de onde eu estou falando?

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