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Chuvas: almas ilhadas

Me percebo cheia de histórias sobre águas, enchentes e um povo resiliente, tanto quanto desprovido de entendimento político capaz de elevar o nível da crítica, viés de possíveis mudanças, talvez.

Desde a infância, ilhada.

Memórias de águas sujas e torrenciais, levando do pobre os poucos objetos, transformados em chacotas nas falas alegres dos que dizem que pobre nunca tem nada mas depois da enchente diz que perdeu tudo; dor de empobrecido pode ser piada em mesas fartas, bares e outros territórios de esgares egóicos.

A insensibilidade social também é tentáculo liberal, pequeno apartheid localizado na infâmia de não perceber o outro como igual em direitos, em necessidades humanas.

Talvez as primeiras lembranças estejam opacas, distribuídas em lagoas “espontâneas” que impediam a passagem para os lados periféricos da cidade.

Mas na lista grande entram desabrigados, recebedores de lençóis doados, roupas usadas, comida comprada por caridade.

Os três irmãos que morreram na queda da barreira por estarem a pescar em tempos de rio cheio, foram enterrados em comoção; mas se mantiveram apenas enterrados. Assim como a criança de apenas dois anos que afogou no quintal da própria casa.

Ninguém quer saber de fantasmas, ainda que gerados pelas desigualdades que ornam os pescoços de poucos, alimentam as ilusões de muitos e promovem a morte de quase todos.

De morte moral também se enterra gente, desumaniza, embrutece, mas a mediocridade associada ao contexto amoral gera dirigentes, compradores de poderes, que ao final se tornam dominadores de histórias, apagadores de memórias.

Esta vivência anfíbia molha minha alma de sobrevivente!

Outra vez às margens do Camaragibe fremente, que reclama suas várzeas, que leva em suas correntezas o acerto de contas pelas matas ciliares derrubadas, pelo lixo, pelo entulho de interesses vis que prosperam sem respostas ao futuro.

Tudo é política abaixo dessa chuva que transborda canais e desaloja as ratazanas, promove inquietação e faz tremular o lume das velas nos lares insones construídos como único refúgio possível.

Não temos o que romantizar. A fé somente deve nos estimular, pois já não tem sentido justificar calamidades (grandes ou pequenas) com os tribunais divinos.

Pés na água, alma encharcada de responsabilidades, a vida assustada dessa história ilhada, entre crimes, medos e fatalidades: alguém chora, algo desmorona, um desejo de sol rabisca esperança.

De tantas águas que rolaram, posso identificar as áreas aterradas, soterradas, enlameadas, pesando sobre as consciências anestesiadas.

O sol não iluminará ainda as nossas almas.

 

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