A panaceia da redução da maioridade penal

Marcelo Henrique

Educarás a criança e não precisarás punir o adulto (Pitágoras, 500aC).

Muito tem sido dito, nestes dias ainda mais difíceis e conturbados, acerca da redução da maioridade penal. Claramente, temos dois grupos equidistantes: um favorável e outro contrário à medida, com argumentos relevantes, lado a lado. Creio que o debate, em qualquer situação, com a possibilidade da exposição de motivos e a defesa de pontos de vista é sempre salutar em qualquer Sociedade, ainda mais aquela que se erige – e deve se manter – sob os nítidos pilares da democracia, da pluralidade e do laicismo.

Assim, em nenhum momento de debates públicos e de construção legislativa e atuação administrativa do Estado brasileiro (e dos demais Estados democráticos e contemporâneos) podemos aceitar que a exacerbação das paixões, na expressão de dadas ideologias, possa tender para o religiosismo da discussão, invocando, inclusive divisas e preceitos de caráter fundamentalista, sejam religiosos ou clérigos. A análise desta tormentosa e pungente questão, a do aumento da criminalidade e a precocidade da delinquência, considerando as tendências inatas, a proximidade dos infantes com o crime organizado e a falência das instituições sociais (entre as quais a família, a escola e, é claro, os institutos correcionais – as prisões), exorbita os argumentos de ordem meramente pessoal e os derivados da formação religiosa ou teológica.

Espera-se, outrossim, a abstenção dos pré-juízos de valor, derivados dos componentes de ordem cultural ou religioso, permitindo um exame baseado em fatos, em levantamentos estatísticos isentos e em análises científicas, que possam desembocar em uma análise mais equilibrada, considerando, portanto, todas (ou a maior parte, pelo menos) das variáveis inclusas.

O fato é que a reestruturação dos sistemas policial e judicial, com apoio na legislação e na organização do poder público é necessária e urgente, mas não pode ficar ao sabor da ambiência de momento. Do contrário, devemos nos distanciar convenientemente das situações e dos fatos cotidianos mais agudos, de comoção social (sobretudo os de maior gravidade que ocupam, quase que diariamente, os noticiários), para que a diagnose não fique sujeita – quase que exclusivamente – ao sabor da influência do conteúdo psicológico (individual e coletivo), que acena com medidas drásticas e soluções instantâneas. No calor das ocorrências, as decisões (administrativas, legislativas ou judiciais), ensina-nos a História, podem ocasionar riscos ou danos à ordem, à segurança jurídica e à própria estrutura do nosso Estado Democrático (e Constitucional) de Direito.

Neste sentido, entendemos que o mero discurso da redução da maioridade penal como solução mágica para conter a expansão e o alcance da criminalidade, hodiernamente, é, pois, inoportuno. Em paralelo, a – sempiterna – ameaça da propositura de projetos de lei que abordem a previsão de penas mais severas (prisão perpétua, castigos, trabalhos forçados e até a pena capital), percorre a mesma trilha.

Entendemos que, mesmo considerando os variados e inúmeros defeitos na aplicabilidade das sanções da Justiça Humana, o axioma “não fechar a porta do arrependimento (e da regeneração social) ao preso” deve ser importante e inafastável baliza.

Recordemos que, há alguns anos, nossa legislação civilista corrigiu um dos graves equívocos e “brechas” do sistema, ao reduzir a maioridade civil para o mesmo patamar da penal, isto é, 18 anos. Com esta idade, o indivíduo acha-se habilitado (fisicamente) ao exercício de atividades no setor público, via concurso, pode dirigir veículo automotor, e tem o direito pleno de votar e ser votado, entre outros, ressalvando-se situações excepcionais, como a possibilidade do alistamento eleitoral a partir dos 16 anos, o exercício do trabalho (no setor privado), a assunção de titularidade empresarial, como fator emancipativo, inclusive.

Usando o bordão de que “as coisas não se mudam por Decreto” (ou por Lei, extensivamente), não seria fácil introduzir no Código Penal um dispositivo permissivo à aplicabilidade das sanções criminais aos (hoje) menores, fixando uma nova margem (16, 15, 14 anos, por exemplo, ou outra idade). Todo o sistema jurídico estaria comprometido, entendemos, caso não se procedesse à uma mudança sistêmica, com novas regras e parâmetros para as diversas contingências e peculiaridades da vida em Sociedade.

No que tange à majoração das penas, lembremos que, em tempos relativamente recentes, já se tentou, sem o sucesso esperado, majorar o quantum de tempo da pena, como os célebres crimes hediondos e os resultados não foram relevantes na diminuição destes tipos criminais.

O discurso ácido de alguns políticos ou especialistas, direcionado à reestruturação do caráter tipológico das condenações, igualmente, afronta consideravelmente o sistema, e, constitucionalmente falando, devemos lembrar de diversos incisos do artigo 5º, da Carta Magna, que estabelecem os princípios regentes da justiça criminal (e não somente aplicáveis a ela, mas subsidiariamente aos outros campos de incidência jurídica e processual), como a impossibilidade de imposição de tortura ou tratamento desumano ou degradante (inciso III), a vedação às penas de morte (inciso XLVII, alínea “a”), de caráter perpétuo (alínea “b”), e de trabalhos forçados (alínea “c”); […] e) cruéis (alínea “e”), assegurando-se aos presos, ainda, o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX).

Do ponto de vista educacional, também, a redução da maioridade representaria um incremento considerável no número de detentos, em proporções impossíveis de serem suportadas pelo atual sistema prisional, que já se encontra por demais saturado e com destacadas dificuldades gerenciais, além de representar a temível destinação de adolescentes ao convívio com criminosos de variada estirpe, representando, na prática, aquilo que tem sido descrito pelos estudiosos como a “universidade do crime”. Deste modo, além de alijados dos necessários processos de formação biopsicossocial, em face da marginalidade social, a imensa maioria destes “novos” detentos ficaria confinada à permanência por tempos variáveis junto ao “depósito” de criminosos, sem reeducação, sem readaptação, sem recuperação para a vida em Sociedade, somados aos criminosos que já se encontram nas penitenciárias brasileiras.

Panorama e cenário, então, catastróficos.

Um outro aspecto – sombrio, perigoso, mas, verdadeiramente provável – é o “patrocínio” deste aumento de contingente de presos, egresso da ampliação da idade criminal, por pessoas e entidades que pretendem ver, em curto espaço de tempo, a falência completa do sistema penal, para justificar e aprovar a “privatização” das cadeias, com a concessão à iniciativa privada da exploração (em patamares financeiros indiscutivelmente lucrativos) das penitenciárias, a exemplo de muitos países de primeiro mundo.

O pano de fundo para a questão da delinquência juvenil continua sendo a verdadeira omissão de pais e responsáveis que, muitas vezes sem os recursos mínimos para a mantença, deixam crianças e adolescentes entregues à própria sorte ou aos “padrinhos” do crime. Também de empresários, sobretudo os maiores que, inclusive com programas de incentivo que incidem sobre o imposto de renda da pessoa jurídica, deixam de promover iniciativas complementares, embasadas em programas socioeducacionais, de formação pedagógica e de formação para o trabalho, bem como das organizações governamentais, públicas, que minimizam o investimento em áreas prioritárias como educação, saúde, trabalho, saneamento, cultura e lazer, capitalizando-os para a manutenção do sistema político, por exemplo. Outro elemento grave para uma nação terceiro-mundista como a nossa é a inexistência de programas públicos e privados de atendimento às comunidades mais carentes, mais expostas aos cartéis e indústrias do crime organizado.

Assim, a questão de fundo, socialmente, não depende, certamente de uma reformatio legis, mas, sim, perpassa a correta execução das leis já existentes, a diminuição dos recursos processuais, meramente procrastinatórios, e a necessidade do aprimoramento das correições processuais, para impedir que os crimes prescrevam, assim como o redesenho constitucional-processual. Sem isso, continuaremos atônitos, observando a elevação progressiva dos índices de criminalidade e ouvindo discursos vazios voltados para o punir, ao invés de educar!

Nota do Autor: Panaceia – remédio para todos os males, ou que, supostamente, cura tudo.

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