Yoani Sánchez, a direita e a esquerda

Como se sabe, todas as manchetes servem a interesses e Yoani Sánchez também serve, mesmo que involuntariamente

Eugênio Bucci – O Estado de São Paulo

A blogueira cubana Yoani Sánchez  (http://www.desdecuba.com/generaciony/), também colunista do Estado,  virou uma celebridade mundial. A imagem da dissidente que jamais  conseguiu autorização de seu governo para sair do país, nem mesmo uma  viagem de poucos dias, virou um símbolo eloquente do limite estreito,  muito estreito, que confina as liberdades individuais em Cuba. Nessa  condição, ela é manchete permanente.

Como se sabe, todas as  manchetes servem a interesses e Yoani Sánchez também serve, mesmo que  involuntariamente. Ela tremula como um estandarte nas mãos dos  opositores do regime dos irmãos Castro, principalmente dos opositores de  direita – pois é também possível uma oposição à esquerda, como logo  veremos.

Com frequência os relatos sobre as desventuras da  blogueira vêm junto com um discurso que procura caracterizar a ditadura  cubana como a tragédia inevitável, fatal, de qualquer sonho socialista.  Esse discurso se vale de Yoani para mentir, o que é bem fácil constatar.  Todas as mudanças sociais vieram embaladas por ideais de igualdade,  como a Revolução Francesa, ou de igualdade de oportunidades, como a  Revolução Americana. Mesmo agora, a partir do final da 2.ª Guerra,  inúmeros governos declaradamente socialistas se sucederam na Europa, em  perfeita convivência com a sociedade de mercado, sem que isso  acarretasse uma degeneração de corte totalitário. Tanto é assim que, no  mundo contemporâneo, o ideário socialista de perfil não autoritário foi  acolhido como proposta legítima e até mesmo necessária à normalidade  democrática.

Portanto, é falso o discurso direitista que atribui  os padecimentos (reais) do povo cubano ao DNA de qualquer projeto de  sociedade sem pobreza. A construção da tirania em Cuba não tem origem na  rebeldia dos que se insurgiram contra a ditadura de Fulgêncio Batista,  mas na conformação do Estado aos moldes ditados pela União Soviética.

Fora  isso, o autoritarismo em Cuba tem sua origem na esquerda, sem dúvida,  mas, em matéria de autoritarismo, a direita delinquiu muito mais em  outros países. Avesso a essa ululante evidência, o discurso direitista  instrumentaliza a figura de Yoani Sánchez para alardear que toda  plataforma socialista está fadada ao totalitarismo e à escassez – e que  só há liberdade num ambiente baseado mais no mercado do que na justiça  social, mais na ostentação do que na dignidade humana.

Oportunista,  esse discurso nunca menciona o bloqueio que os Estados Unidos impuseram  à ilha há exatos 50 anos (ele teve início no dia 5 de fevereiro de  1962). A própria Yoani, é interessante notar, não vai por aí. Em mais de  uma ocasião ela pediu em seu blog a suspensão desse embargo “absurdo”.  Ao mesmo tempo, ela cuida de alertar para algo que é profundamente  verdadeiro: o bloqueio pune o povo, é verdade, mas, perversamente,  convém aos irmãos Castro, que se valem dele para culpar os Estados  Unidos por tudo o que acontece de ruim. Tanto que, para ela, fim do  embargo seria “o golpe definitivo contra o autoritarismo sob o qual  vivemos”.

Há poucos dias, uma vez mais, Yoani teve negado o seu  pedido para viajar para o Brasil (pela 19.ª vez, segundo sua contagem).  De novo, foi notícia. Ela queria vir ao lançamento do documentário  Conexão Cuba-Honduras, de Dado Galvão, em que aparece como entrevistada.  Sem a presença de sua convidada mais ilustre, o lançamento foi adiado.

Enquanto  isso, a injustiça prolonga-se em Havana. Muitos, hoje, no Brasil e em  Cuba, apoiam a ditadura cubana. Até mesmo no caso de Yoani, a quem  acusam de ser remunerada por organizações de direita e de ganhar de  presente recursos avançadíssimos de tecnologia digital para fazer  contrapropaganda. Logo, não movem uma palha pelos direitos dela.

O  curioso é que, mesmo se fossem verdadeiras, as acusações não poderiam  justificar o arbítrio. O direito de ir e vir é um direito fundamental da  pessoa humana, e não apenas de quem concorda com o governo. Em qualquer  democracia os direitos fundamentais de um cidadão não estão  condicionados às opiniões dele. Em Cuba, porém, é assim que funciona. E  ainda há os que, em nome dos ideais de esquerda, batem palmas para a  opressão, dizendo que na ilha não há fome, não há morador de rua, todos  têm escolas e hospitais à vontade, e que, diante disso, a falta de  liberdade é um reles detalhe. Outra vez: mesmo se aceitarmos como  verdadeira essa afirmação – e não há comprovações empíricas de que ela  seja realmente verdadeira -, mesmo assim ela não tem validade política,  pois o suposto atendimento das necessidades materiais não compensa a  falta de liberdade. Aliás, lá mesmo, em Cuba, na prisão americana de  Guantánamo, os prisioneiros fazem suas refeições diariamente, entre uma  tortura e outra, além de contarem com médicos e dentistas de plantão.  Isso não significa que vivam “numa sociedade justa”. Eles vivem  encarcerados, isso sim. Comida, cama, escola e hospital não são  suficientes para que se tenha justiça social, paz e democracia. E sem  liberdade constituem a negação dos ideais de igualdade.

Por esse  ângulo é que podemos entender o lugar de uma oposição de esquerda à  tirania dos irmãos Castro, uma oposição que não se confunde com as  causas da direita. Ela não se serve da falta de liberdade como pretexto,  mas toma a liberdade como fim. Para ela, a livre comunicação das  ideias, “um dos mais preciosos direitos do homem”, segundo a Declaração  dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, não é meramente um capricho  liberal, mas uma conquista de toda a humanidade, na exata medida em que  os direitos sociais não beneficiam apenas um ou outro sindicato, mas  toda a sociedade. Ao romperem com a democracia, os ditadores em Cuba  traíram o sonho que um dia representaram. Por isso também os opositores  de esquerda defendem os direitos de Yoani Sánchez.

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