Xi Jinping na Rússia

Sergei Karaganov- Valor Econômico 

O clima em torno à viagem iminente de Xi Jinping à Rússia – sua primeira a um país estrangeiro como novo presidente da China – me faz lembrar um slogan da minha infância, no fim dos anos 50: “Rússia-China, amizade para sempre”. A ironia é que mesmo no auge da disseminação dessas palavras de ordem, as relações sino-russas se deterioravam a passos largos, o que culminou, menos de dez anos depois, em confrontos ao longo do rio Amur, na Sibéria. Será que essa máxima é mais válida hoje do que naquela época?

Depois que a China abriu sua economia e a Rússia emergiu da União Soviética, as relações bilaterais entraram em novo estágio. Agora, o que prevalece é a boa vontade, embora ainda pairem algumas das antigas suspeitas, e tenham surgido novas.

Não se espera que a visita de Xi prenuncie grandes avanços. Podemos esperar alguns contratos de exportação de hidrocarbonetos russos à China, mas não muito mais. Ainda assim, a visita colocará em evidência vários aspectos importantes da relação bilateral.

Os chineses nacionalistas ainda se lembram das conquistas da Rússia imperial, enquanto muitos russos tem um medo mórbido do “perigo amarelo”, embora os mongóis tenham conquistado e reinado na China, mas tenham acabado expulsos da Rússia

Para começar, tanto o governo da Rússia como o da China podem se dar ao luxo de minimizar a importância de seus laços com os Estados Unidos. A China vê a Rússia como sua retaguarda estratégica – e talvez uma base – na escalada da rivalidade com os EUA (embora ainda não como uma aliada). Os líderes russos veem a competição sino-americana como um reforço bem-vindo ao peso estratégico de seu país, que, ao contrário da China, não vem sendo fortalecido por um crescimento econômico sólido. Quanto mais os EUA contestarem a inevitável expansão do “perímetro de segurança” da China, melhor para a Rússia, ou pelo menos parece ser assim que pensam os estrategistas do Kremlin.

Enquanto isso, as relações sino-russas atingiram um grau de entusiasmo nunca antes visto. Os chineses vêm fazendo o possível para aplacar as preocupações russas. As antigas disputas fronteiriças estão silenciadas. O volume de comércio cresce em ritmo acelerado.

Além disso, não houve expansão demográfica chinesa na Sibéria, embora muitos jornalistas e especialistas venham espalhando essa história. O número de chineses residentes na Rússia – seja de forma oficial ou clandestina -chega a 300 mil. Antes da Revolução de 1917 havia muitos mais chineses morando no Império Russo.

Sob a superfície, no entanto, persistem inquietações nas relações bilaterais, em parte por motivos históricos. Os chineses nacionalistas ainda se lembram das conquistas da Rússia imperial, enquanto muitos russos tem um medo mórbido do “perigo amarelo”, embora os mongóis tenham conquistado e reinado na China, mas tenham acabado expulsos da Rússia (para não mencionar que os chineses nunca invadiram a Rússia).

Os motivos mais relevantes para a inquietação são as tendências demográficas negativas na região de Transbaikal, no extremo oriente da Rússia, e o temor – compartilhado por todos os vizinhos da China – de um poder chinês desenfreado. De fato, os especialistas têm certa razão: se a atual quase estagnação econômica na Sibéria persistir, o mundo vai testemunhar uma segunda e épica versão da “Finlandização”, desta vez no Oriente. Pode até não ser o pior cenário a ser enfrentado por um país, mas não é a mais agradável das perspectivas para os russos, tendo em vista o sentimento, profundamente arraigado, sobre seu status como grande potência.

Tal cenário não é inevitável e, certamente, não passará pelas cabeças de Xi e do presidente da Rússia, Vladimir Putin, quando se reunirem em Moscou. A China atravessa uma crise de identidade já que enfrenta uma desaceleração econômica quase inevitável e precisa adotar um novo modelo de crescimento.

A Rússia, enquanto isso, claramente sofre de uma crise de identidade ainda mais grave. Sobreviveu, de alguma forma, ao choque pós-soviético e agora se recuperou. Ainda assim, há cerca de seis anos a Rússia vive em uma espécie de limbo, sem estratégia, sem objetivos e sem consenso da elite sobre rumos para o futuro.

Essas incertezas fundamentais podem ser uma benção para as relações sino-russas. Os dois líderes podem contar que o outro não vai criar problemas adicionais e, até, que vai ajudar passivamente em questões geopolíticas. Na Síria, por exemplo, os dois países mostraram que, de fato, vivem em um mundo multipolar. E os novos acordos de fornecimento de gás e petróleo vão reforçar as duas economias.

No longo prazo, as relações sino-russas vão depender em grande medida de que a Rússia supere a atual estagnação e, entre outras medidas, comece a desenvolver os vastos recursos, inclusive aquíferos, da região de Transbaikal. Para fazê-lo, vai precisar de capital e tecnologia não apenas da China, mas também do Japão, Coreia do Sul, EUA e países do sudeste asiático. A região de Transbaikal poderia expandir com relativa facilidade os laços com as economias asiáticas famintas por recursos minerais, para benefício de todos. Até o problema de mão de obra é solucionável, com milhões de trabalhadores da antiga Ásia Central soviética – e talvez de uma Coreia do Norte que se liberalize gradualmente – podendo fazer parte do ambicioso projeto que seria necessário.

O primeiro passo, no entanto, é criar condições para que os russos considerem atrativo viver e morar na região. O encontro de cúpula do Fórum de Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico (Apec, na sigla em inglês) em Vladivostok em 2012 criou apenas um enclave de desenvolvimento. Ainda falta uma estratégia de crescimento para toda a região. Se não houver uma, a atual “entente cordiale” sino-russa quase certamente vai enfraquecer-se. A Rússia vai começar a sentir-se vulnerável, sendo pressionada a adotar atitudes arriscadas em termos geopolíticos ou a submeter-se às vontades da China.

A esta altura, no entanto, as relações entre China e Rússia parecem ser bem melhores do que a amizade mítica de minha infância. Putin e Xi farão de tudo para destacar isso. (Tradução de Sabino Ahumada).

.