Repórter Nordeste

Você compraria o “buffet tronco dos escravos”?

Buffet virou móvel que ornamenta salas ricas; nas redes sociais, ele simboliza o racismo

Um projeto de Arranjo Produtivo Local, encampado pelo Governo de Alagoas em parceria com SEBRAE no ano de 2017, se transformou em discussão com acentuada polêmica entre militantes e outras representações da sociedade civil. Os designers Marcos Batista e Eduardo Peroni apresentam a mostra com a temática “O Quilombo dos Palmares e seu líder Zumbi” como inédita e oriunda de capacitações realizadas pelas consultorias do SEBRAE no estado, portanto, um sucesso!

Móvel se inspirou nesta peça, local de tortura dos escravos fugidos que buscavam a liberdade no Quilombo dos Palmares

Mas a causa das discussões não se assenta na temática em si, mas em uma leitura do ambiente, que transformou em móveis, tanto a “cadeira de Zumbi” como o “tronco dos escravos”.

No catálogo encontramos a seguinte frase de Marcos Batista: “ Não se trata apenas de móveis, mas de histórias, de pessoas que com seus sorrisos e mãos preenchem nossas casas de alegria. A paixão em ser marceneiro.”

Na rede social facebook, a ativista Sandra Sena, escreve em crítica: “Não. Não é surpreendente que mais de 100 anos se passaram após o “fim da escravidão” e os/as “inventores/articulares/pensadores” das coisas (dos móveis, das roupas, dos produtos de higiene pessoal, etc…) tendem a elaborar suas “obras” baseados no pior (se é que realmente existe pior) lugar da exploração da nossa população pobre e negra, sem nenhum filtro, nenhum ponto crítico sobre o que aconteceu e AINDA ACONTECE. A escravidão não só foi real, como ela ainda é presente.”

O catálogo apresenta o território inspirador com relatos da sua história: “Quilombo dos Palmares. Localizado na região da Serra da Barriga, atualmente pertence ao município de União dos Palmares, Alagoas, o Quilombo chegou a ter uma população de aproximadamente 30 mil pessoas entre elas escravos fugitivos, […] tornando-se um símbolo da resistência negra à escravidão”.

Pelo fio do condutor do debate crítico, é um buffet denominado “tronco dos escravos” o móvel que despertou a indignação, pois carrega a representação da prisão e tortura de negros escravizados pelas mãos e pés, deixando-os indefesos e à mercê de todo tipo de ato cruel.

A advogada e militante feminista Andrea Albuquerque escreveu em sua timeline: “Buffet tronco dos escravos”. Quem, em sã consciência, compra um móvel que retrata um aparelho onde os escravos eram deixados presos pelos pés?
O catálogo fala da criação com vistas à competitividade da linha no mercado: “Idealizada pelos designers Marcos Batista e Eduardo Peroni a APL de Móveis de Maceió e Entorno, o projeto consiste na estratégia do design aplicado para agregar valor aos produtos e serviços e dar mais visibilidade ao APL e empresas participantes. A linha de móveis “QUILOMBO DOS PALMARES” apresentará uma história importante e simbólica do Estado de Alagoas como diferencial competitivo”.

Para Sandra Sena, o significado do buffet vai além do mercado: “Se o tronco (dos séculos anteriores) foi o lugar de TORTURA dos povos escravizados, hoje, ele é o “Buffet tronco dos escravos”, onde “pessoas” vão deliciar sob suas refeições, esse não é o único problema desse catálogo, mas com certeza, ele reflete muito sobre o que está disposto e de que forma ele foi pensado.”

A socióloga Regina Lopes, também se posiciona: “Convocar o Movimento Negro de Alagoas e avançar contra esse tipo de apologia…O silêncio não nos leva para outro lugar que não seja o abismo!”

Nas discussões em rede, nem todos concordaram com o racismo na arte produzida pelos designers. “Depende do ponto de vista de cada um. Não vi racismo nenhum. Acredito que seja uma forma de homenagem”. Afirmou Jeane Porfírio.

A jornalista Carla Serqueira mostrou indignação: “Que horror! E todos brancos. Isso é apropriação indevida. Pegaram o Quilombo dos Palmares para fazer de grife”.

A discussão por certo não encerra aqui, nem temos a pretensão de gerar material científico com laudas e regras próprias, por isso, encerraremos este texto com reflexão própria: E se colocássemos um móvel “pau-de-arara” em nossa sala? E enfeitássemos nossas casas com o centro de sala “câmera de gás”?

E se entendêssemos melhor o simbolismo das dores como representação de resistência, luta, sangue e lágrimas? E se não fosse tão difícil reconhecer e respeitar as identidades e lutas étnicas?

Nós do blog, reunimos as informações públicas deste debate e devolvemos para a sociedade alagoana na esperança de que a evolução seja para todos, e nossa alagoanidade negra e resistente não se transforme em enfeite de casas ricas, mas orgulho identitário e inspiração para lutas novas, sempre!

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