Violência em meio a fome, nas Filipinas

Em vez de mísseis e de caças carregados de bombas, o porta-aviões USS George Washington chegou à costa das Filipinas, ontem, com uma nobre missão: levar adiante a Operação Damayan (Solidariedade, em tagalo). Os 5,5 mil militares da tripulação estão encarregados de suprir primeiros socorros e distribuir toneladas de alimentos para as regiões mais afetadas pelo tufão Haiyan. Mas a assistência, que já esbarrava nas dificuldades logísticas — muitas das 7 mil ilhas devastadas estão isoladas —, ganhou ontem um inimigo imprevisível: a violência, abastecida pela fome. Em Carigara, na província de Leyte, supermercados têm sido alvos de saques, depois de seis dias sem receber qualquer ajuda.

Em Tacloban, o epicentro da catástrofe, os moradores começaram a sepultar os corpos de 300 familiares na encosta de uma montanha. Um novo túmulo coletivo, com capacidade para abrigar mil cadáveres, deve ser aberto nas próximas horas. Haiyan atingiu a cidade com ventos de 315km/h e rajadas de 380km/h, na última sexta-feira. Rebeldes da região dispararam contra civis e comboios humanitários, levando a organização não governamental Plan a retirar os 15 funcionários de Tacloban, ante a insegurança. Nem mesmo a reabertura do aeroporto e a chegada de um cargueiro C-130, ontem, foram o bastante para levar um pouco de alívio à cidade. Nas últimas horas, o número de mortos subiu consideravelmente e já chega a 4.460. Pelo menos 12 milhões de filipinos foram afetados e 920 mil estão desabrigados.

“Quem não ficaria desesperado sem comer durante seis dias? As pessoas ficaram sem suas casas, nada sobrou”, afirmou ao Correio Adrian Ferraren, 24 anos, morador da Ilha Bantayan, a 200km de Tacloban. “Eu tive sorte. Segui as instruções de segurança do governo e, quatro horas antes de o Haiyan tocar o solo, eu e minha família nos alojamos em um ginásio, que abrigou 500 pessoas. Nós levamos macarrão e remédios. No último dia 11, deixei minha cidade natal rumo a Cebu, em um pequeno bote. Foi terrível. Ainda não temos água nem eletricidade”, relatou. Guiuan, na Ilha de Samar Oriental, também enfrenta uma onda de pilhagens e parte dos 45 mil moradores se pôs em fuga para Cebu e Manila.

Por e-mail, Elisabeth Byrs, porta-voz do Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, pela sigla em inglês), explicou que existe uma carência de caminhões e de combustível para escoar as doações. “Os escombros continuam a restringir, de forma severa, a entrega de ajuda. O transporte; a distribuição de comida, abrigos de emergência, kits de higiene, sacos mortuários; e o estabelecimento do serviço de rastreamento de famílias são urgentemente necessários em Tacloban”, afirmou. De acordo com ela, as 25 agências humanitárias presentes nas províncias de Leyte, Cebu e Samar Oriental também precisam manter o foco no apoio às comunidades pesqueiras, a fim de garantir o suprimento de alimentos. Alfred Romualdez, prefeito de Tacloban, disse que ainda há corpos espalhados pelas ruas. “É assustador. (…) A única opção é usar o mesmo caminhão para distribuir comida ou para coletar os corpos”, alertou.

“É um pesadelo logístico”, admitiu Natasha Reyes, coordenadora de emergência da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), à agência France Presse. “O acesso é muito difícil e a situação impede as pessoas de receber ajuda.” Valeria Amos, diretora de operações humanitárias da Organização das Nações Unidas (ONU), expressou sua desolação com a lentidão da ajuda. “Tenho o sentimento de que abandonamos as pessoas”, declarou.

Polêmica

O governo chinês foi alvo de críticas, ao anunciar a remessa de US$ 100 mil em espécie para as Filipinas. A imprensa norte-americana considerou o valor modesto demais e o associou à deterioração nas relações entre Manila e Pequim. “A segunda economia do mundo joga moedas em um arquipélago devastado”, escreveu a revista Time, que classificou a ajuda de “insultante” e criticou a “mesquinharia”. Em dezembro de 2011, os chineses contribuíram com US$ 1 milhão ao mesmo país, depois da passagem da tempestade tropical Washi, que matou centenas de filipinos.

As autoridades de Pequim decidiram mandar US$ 1,6 milhão adicionais em donativos. “Para mim, o mais importante é que estamos recebendo socorro. Cada dólar, cada peso ajuda. Não temos o direito de reclamar sobre quantias”, desabafou à reportagem a jornalista Joanna Cuenco, 27 anos, moradora de Cebu.

Ele não aguentou esperar
Quirico Dejillo, 88 anos, resistiu à força monstruosa do tufão Haiyan. Seria um sobrevivente, se o corpo frágil não tivesse cansado de esperar por uma ajuda que nunca veio. Ele morreu ontem, no vilarejo remoto de Bantigue, próximo à cidade de Isabel, na província de Leyte. Wilma Lumanglas lamentou a morte do pai e assegurou que muitos outros tiveram o mesmo destino. “Meu pai se foi. Tantos outros idosos estão morrendo de fome”, declarou ao Yahoo! Southeast Asia, por telefone. “Não podemos dar ao meu pai um enterro decente. Meus familiares não têm dinheiro e não há como enviar remessas, pois as lojas estão fechadas”, explicou a mulher, que mora em Batangas, a 960km de Bantigue.

Rebecca, o milagre
Aos 13 anos, Rebecca está órfã e vai carregar um trauma pelo resto da vida. Internada em um hospital de Tacloban, a menina ficou seis dias presa sob os escombros de sua casa. Ao seu redor, os corpos dos familiares. Ninguém sobreviveu, à exceção dela. Ferida em estado grave e alheia aos outros pacientes, ela consegue pronunciar apenas seu nome, quando as enfermeiras tentam contato. Os médicos limpam com frequência as lesões, que se infeccionaram. Rebecca tornou-se um símbolo em meio à tragédia humanitária provocada pelo tufão Haiyan.

4.460
Número de mortos pelo tufão Haiyan, segundo balanço provisório das autoridades filipinas.

3,9 milhões
Total de crianças que precisam desesperadamente de comida, água e medicamentos, no leste das Filipinas, de acordo com a organização Save the Children.

Fonte: Correio Braziliense

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