Violência: a face cruel da crise no Rio, que deixa um rastro de vítimas e desalento

 

O agravamento da violência no Rio não sai do destaque no noticiário. “Acontece a qualquer hora do dia, em qualquer lugar”, dizem cariocas. Especialistas creditam parte do aumento no número de ocorrências à crise financeira que, no caso do Rio, atingiu patamares imensuráveis. Mas a omissão do estado, o armamento cada vez mais pesado e a corrupção na segurança são também elementos responsáveis pela produção cada vez maior de vítimas no dia a dia do Rio.

“Quando se tem uma crise econômica muito forte, o primeiro passo é aumentar a economia informal, mas no rastro disso também aumenta a criminalidade patrimonial e a criminalidade contra a pessoa. É um raciocínio muito fácil de entender. E é obvio que a há pessoas que não cometiam crimes e passam a cometer porque estão no sufoco”, explicou o delegado Vinicius George.

O agente de segurança com 30 anos de carreira explica ainda que, em laços de tensão social, aumentam outros tipos de crime, como agressões, violência doméstica e latrocínios. No caso do Rio, soma-se à crise econômica que não é apenas nacional, e à crise política, exemplificada na prisão dos dois últimos governadores do estado, e aos recorrentes protestos e processos contra o atual, Luiz Fernando Pezão (PMDB).

“Então você tem somado à crise econômica, uma crise política ‘braba’ com um vácuo de autoridade. Além disso, já existia um desgaste da própria segurança pública, e esses sinais eram claros. Essa curva de criminalidade está pipocando, mas essa tendência já era percebível”, acrescentou o delegado.

“Quando o Brasil ganhou a sede da Copa e da Olimpíada, houve uma grande sensação de euforia. Se prometiam muitos legados, mas não existia movimentação política nesse sentido. E agora as coisas estão vindo à tona: as consequências desses arranjos de interesses privados. Acho que o que a gente está vivendo hoje é uma ressaca de uma festa que não fomos convidados. Está tudo entregue”, destacou Guilherme Pimentel, coordenador do Defezap, um projeto gerado pelo Meu Rio, sistema de defesa cidadã contra a violência de estado.

Números

A ressaca — que Pimentel citou — não veio fraca. Só nesta semana, no Rio, uma menina de 10 anos foi morta em tiroteio no Lins de Vasconcelos, Zona Norte; uma aluna de 14 anos foi baleada dentro do Colégio Estadual Ricarda Leon, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense; um homem morreu baleado durante um tiroteio no Morro do São Carlos, também na Zona Norte; e ainda repercutem notícias sobre o estado de saúde do bebê Arthur que foi atingido por um tiro ainda dentro da barriga da mãe, Claudineia dos Santos Melo, na sexta-feira passada (30); entre muitos outros casos. Especialistas apontam para a necessidade de discutir a raiz do problema, que ultrapassa a guerra entre mocinho e vilão.

“A gente vive um jogo macabro de policia e ladrão. São dois lados se engalfinhando e a população vivendo o problema”, comentou Pimentel.

Neste mês de maio, foram registradas 424 vítimas de homicídio doloso no estado do Rio, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Esse número indica um aumento de 55 vítimas em relação ao mesmo mês de 2016, ou 14,9% de vítimas a mais. Já quando observado o acumulado dos cinco primeiros meses deste ano (2.329 vítimas), em comparação com os cinco primeiros meses de 2016, houve um aumento de 230 vítimas, ou 10,9%.

Mas os números são ainda maiores para o registro de roubo no estado, com 13.851 casos. Se a comparação for feita apenas entre os eventos registrados em maio, o aumento entre 2016 (9.345 registros) e 2017 (11.325 registros) seria de 21,1%.

“A falta de transparência dos órgãos de segurança pública e das policias, além da ineficácia de controle da atividade, nos coloca reféns de um medo que personifica o mal nesse assaltante. Mas a gente precisa tentar entender quais são os arranjos que geram esses fluxos de aumento de assalto. E pode ter a ver com as próprias corporações de segurança pública”, disse Guilherme Pimentel.

Diversificação de crimes 

Ele não poupa críticas à estrutura desse sistema e cita as recentes reportagens que denunciam aluguel de armas para assaltantes como forma de diversificação de receitas. Outras também recentes mostram facções extorquindo comerciantes, o que também aparece como alternativa a crimes recorrentes.

“O crime é dinâmico. Então você vê agora muito roubo de carga, por exemplo. Essas mudanças existem, mesmo que os picos de crime vivam uma repetição, — o que vemos agora já foi visto nos anos 1990 e em 2006/2007 –, mas nem tudo é igual. Outro exemplo é a mudança do mercado de tráfico com o advento das drogas sintéticas”, acrescentou o delegado Vinicius George.

“O crime no Rio está se redesenhando e diversificando receita, e talvez isso tenha a ver com a crise. Os custos disso incluem pagamento a agentes públicos. Alguns dos assaltos que acontecem são para pagar policiais”, disse Pimentel, que relembrou a fala recente do ex-chefe de Polícia Civil do Rio Hélio Luz, afirmando que “só existe crime no Rio de Janeiro com o consentimento da polícia. Ninguém pratica crime nessa cidade sem o acerto com o policial”.

Ele ressalta que o policial não se referia aos crimes eventuais ou passionais, mas sim a crimes como o que ocorreu no dia 22 de maio deste ano, na Central do Brasil. Ao longo de duas horas, 14 lojas foram saqueadas durante a madrugada na Rua Senador Pompeu, num raio de menos de 1 km da sede da Secretaria de Estado de Segurança Pública, Batalhão da PM, Delegacias de Polícia e até mesmo o Palácio Duque de Caxias, prédio das Forças Armadas.

“Muitos policiais estão morrendo em situações de assalto [só no mês de maio, ainda segundo dados do ISP, 14 policiais civis e militares foram mortos em serviço]. E olha a ironia disso: o policial morre no assalto que estava sendo feito para pagar policiais. E a sociedade ainda pede mais polícia”, exclamou Pimentel, completando: “Mais polícia não resolve. O problema não é quantitativo. É qualitativo. A solução tem mais a ver com usar melhor os recursos já existentes e melhorar os recursos de controle policial”.

“Quanto mais polícia você tem, mais difícil é a qualidade e controle do serviço, e com o tempo o problema vai aparecendo. A polícia vira parte do problema, e não da solução”, completou Vinicius.

O que os especialistas estão apontando pode ser lembrado com o recente caso da Operação Calabar, desencadeada dia 29 de junho, pela Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Rio (MPRJ), na qual mais de 90 policiais militares são alvos. De acordo com as investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, do MP, e da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo, os policiais recebiam dinheiro para não coibir o tráfico no município. Os PMs foram denunciados por organização criminosa e corrupção passiva. Já os civis foram denunciados por tráfico de drogas e corrupção ativa.

Para o secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro, Roberto Sá, um dos problemas que afetam a eficácia da política pública de segurança é a falta de dinheiro, que dificulta o pagamento dos policiais e a manutenção das frotas de viaturas. “Não esqueçam que estamos há um ano com estado de calamidade pública financeira decretado. Eu tenho 45% menos de custeio em relação ao ano passado, e 60% menos de custeio para as polícias do que em 2013. O cenário é o mais antagônico possível, com o mínimo de recursos possível”, lamentou.

Favelas

Entretanto, ele também admite que é necessário aperfeiçoar as operações policiais, de forma a evitar mortes de inocentes baleados em tiroteios, como o caso da menina Vanessa Vitória dos Santos, que morreu na terça-feira (4), atingida por uma quando um policial militar se refugiou em sua casa.

“As operações têm que ser qualificadas e aperfeiçoadas o tempo todo. Até porque elas são em ambientes urbanos, ora no asfalto, ora em comunidades”, disse Roberto Sá, após reunião com comandantes militares e comerciantes no 6º Batalhão da Polícia Militar (BPM), na Tijuca.

O diretor da Federação de Favelas do Rio (Faferj), Gabriel Siqueira, afirma que as comunidades são as primeiras a sofrer com o aumento da violência no estado, e destaca que esse é talvez o pior momento vivido pelas favelas do Rio, que poderia ser comparado à década de 1990, “só que com armas mais potentes”.

“Coisa que não se via antigamente, o roubo aumentou dentro das comunidades. E o morador está cada vez mais no meio do fogo cruzado de armas cada vez mais potentes. Estamos no meio de um bang-bang de fuzis a qualquer hora do dia. Antes você só tinha tiroteio quando havia operação policial, e aí, as vezes dava para evitar. Hoje, a polícia está dentro da favela e o tiroteio pode acontecer a qualquer momento”, disse Gabriel, acrescentando:

“Essa política de enfrentamento ao tráfico gera mais mortes que resultados. A base da UPP no Alemão é do lado de uma creche. Que política de segurança é essa? Só tem combate, não tem inteligência”.

Gabriel lembrou do ato pela paz que mobilizou moradores e associados das favelas do Rio no último domingo (2) na orla de Copacabana. Eles homenagearam Marlene Maria da Conceição, de 76 anos, e Ana Cristina Conceição, de 42, mãe e filha, mortas na última sexta-feira (30) por bala perdida no Morro da Mangueira, na zona norte.

“A maioria que mora nas favelas é convivente com o poder paralelo, não conivente. Convivemos, porque o governo do estado nos abandonou à própria sorte, colocou a UPP lá, mas cadê os projetos sociais que foram prometidos no início da implementação das UPPs?”, questionou, na ocasião, o presidente da Associação de Moradores do Complexo da Mangueira, Washington Fortunato.

Em nota, a Secretaria estadual de Segurança disse que “tem como prioridade a preservação da vida, a convivência pacífica e a redução de índices de criminalidade no estado” e que, para isso, tem investido desde 2007 na pacificação nas comunidades, na diminuição do uso de fuzis, na implantação do Sistema de Metas e Acompanhamento de Resultados, além de criar o Programa de Gestão e Controle do Uso da Força para avaliar e capacitar os policiais da atividade-fim, lotados nos batalhões com os maiores registros de letalidade violenta”.

“Cadê os resultados desses projetos?”, interrogou Gabriel Siqueira, completando: “As obras de saneamento não foram feitas. Os projetos não têm editais. A educação que nós queríamos para disputar com o crime organizado não está em pauta. Nenhum projeto chegou, e aí, realmente, sem oportunidade, com desemprego, crise e tudo isso, o crime vira uma opção para muita gente. A favela precisa de investimento social urgente, ou então nós vamos ver mais do que estamos vendo”.

Cidadania

Guilherme Pimentel e Vinicius George revelam que essa explosão de ocorrências é consequência de um longo processo de desgaste em diversos setores do Rio, não apenas em segurança pública. E asseguram que a solução está na regulação desses órgãos, com política pública, através do voto de cidadania.

“A educação pública funciona? Não. A saúde pública funciona? Não. Por que a segurança pública iria funcionar? No fundo, é um somatório de fatores que levam ao cenário que a gente vive. Mas se tivermos que eleger o principal, é o político. Se a direção política é extremamente corrupta, veremos corrupção em todos os lugares, inclusive na polícia. Estranho seria se estivesse funcionando bem”, disse o delegado, finalizando: “Se não mudarmos o nosso comportamento como cidadão, dificilmente vamos mudar a política, e aí não vamos ter melhora”.

“A grande questão é que de todos esses elos que compõem essa dinâmica, a violência de estado é o elo que a gente pode atacar. A cidadania pode ser decisiva nesse sentido. Talvez nesse elo, sejamos capazes de alterar o processo”, finalizou Pimentel.

Fonte: Jornal do Brasil

.