Um espelho sem inversão

Contactos com meu amigo desassossegado

Alessandro Morais

A nossa sociabilidade tem ganho contornos de uma ópera bufa e trágica, encenada com roupas glamorosas e objetos suntuosos, tudo regado a grifes finas e muita sofisticação.

Afinal, a decadência tem de ter elegância.

Vivemos para saciar nossos desejos vãos, somos hipnotizados pelas coisas e quando passamos pelas vitrines dos mais diferentes tipos lá estão elas a dizer: “me compre… me compre, sem mim você não será feliz!”

O mote é ser superficial, reduzir-se ao mesmo status daquilo que adquirimos, sermos o objeto do objeto, comprar e ser comprado, consumir e ser consumido.

É a sociedade da aparência, da forma, do ter…

Uma imensa biblioteca de livros com as capas mais ornamentadas.

E, por dentro, todas as folhas em branco.

“Ora, isto é apenas um ínfimo detalhe!”, diria meu amigo desassossegado.

“Pois, quem vai lá se preocupar com páginas escritas?”

“Livro não é para ler, mas enfeitar estante, ser “bijuteria de analfabeto”

“Que belo mundo esse onde as atitudes, os gestos, os sorrisos, os sentimentos, as palavras tudo é mercadoria de boa qualidade e de ótimo preço, pago a vista e sem desconto”.

“Pechinchar não vale, isso é coisa de pobre!”

Eu disse ao meu amigo desassossegado que assim caminhamos um passo para frente, e dois para trás, agarrando-nos ao bote para não afundar com o barco, sem perceber que a água já está no pescoço.

“Mas”, ele me disse, “Porque questionar as coisas? Porque andar na contramão?”

“Porque não aderir sem pensar?”

“Ah, são os subversivos, os rebeldes”. Mais uma vez, os nossos desassossegados…”

“Ah! que raça mais chata, não conhece os prazeres do ipod, o deleite de uma roupa cara, o orgasmo de uma pajero na garagem…”

“Pobre deles, que só vivem para valorizar a essência, buscar o conteúdo, fortalecer o ser, idiotas!”

“O único ser bom dessa vida é o ser consumista!”

“Se eles soubessem como é bom curar as frustações, os vazios da alma, aquela tristeza que insiste em não sair, curar tudo com um bom passeio no shopping, fazer a catarse das compras, a terapia dos que não querem se curar, ter a certeza que por um momento o que possuo por fora compensa aquilo que não tenho por dentro, que meus dois universos são inversamente proporcionais…”

“Afinal não é preciso se preocupar com aquelas coisas que os olhos não vem, coisas do tipo, valores, qualidades, humanização, transformação interior, ora o que há por dentro ninguém vê, o corpo encobre!”

“E para dar uma força, o banho de loja, nosso baile perfumado, tudo com muito bom gosto, por favor!”

Meu amigo desassossegado diz que isso funciona que é uma beleza!

Ele me disse também que você pode ser a escória da humanidade, mas ainda é chamado de senhor ou senhora- e com muita sorte e uma boa dose de perversidade- vossa excelência, com direito a coluna social, ladeada pelos chics, no jornal de domingo.

“Ainda vem dizer que dinheiro não traz felicidade, isso é conversa de quem não tem onde cair morto”, disse-me ele, em arroubo de satisfação.

Eu acredito que você concorda com este meu amigo.

Você não vai querer que chamem você mesmo de louco, vai?

Afinal você é um nobre seguidor dos ditames da sociedade moderna, lúcida, como tudo o que nos cerca.

Ou não? Meu amigo desassossegado passou para você os seus desassossegos?

Então, temos alguma coisa em comum…

Bem-vindo ao hospício.

.