Para pensar a universidade e as características que causam sofrimento psíquico neste contexto, precisamos partir de sua realidade material: é uma universidade pública ou particular? As relações que se estabelecem nestes dois cenários são divergentes. Na primeira os investimentos vêm do Estado e podem estar atreladas a poderes estaduais ou federais. Já a segunda, parte da iniciativa privada e por isso a maneira de investir e obter lucro é regulada por outras forças.
No entanto, há algo em comum nestes dois cenários: o trabalho. O trabalho que não diz respeito apenas a atividade laboral e física, mas também intelectual e que possui uma dimensão maior do que “operar” ou o “fazer”, estando envolto numa superestrutura historicamente condicionada e socialmente condicionada.
Não podemos perder de vista que as universidades são instituições, isto é, são criadas no seio da sociedade e estabelecem funções específicas na regulação da ordem vigente (burguesa) e, sobretudo, na divisão social do trabalho.
Nestas instituições existem, entretanto, sua própria divisão do trabalho e junto a ela todo substrato ideológico que permeia a legitimidade do poder dentro e fora de seus domínios. Os que entram na universidade passam por um vestibular, ou seja, fazem uma prova para que sejam admitidos ou não, de acordo com suas pontuações, em diferentes cursos.
Percebam aqui as diferenças entre os cursos e seus respectivos status na sociedade em que vivemos. Percebam que desde o ensino fundamental até o médio são moldadas as representações sociais sobre os diferentes saberes construídos na universidade e suas respectivas funções na sociedade burguesa e na estrutura produtiva de diferentes regiões do mundo e na ordem capitalista internacional.
Logo, vivemos no meio da produção e reprodução de diferenças que são construídas nas experiências de diferentes grupos sociais na luta de classes. Não é novidade, camaradas, as diferenças no acesso a educação, saúde, segurança, moradia, etc. E esta realidade material não apenas condiciona, mas cria os sujeitos histórico nas diferentes épocas. Nestes aspectos, não podemos negar que nas universidades encontram-se diferentes sujeitos que carregam em suas histórias as marcas do desenvolvimento capitalista em seu contexto.
Em qual contexto? No contexto latino-americano, de capitalismo dependente e periférico. Que, segundo Florestan Fernandes (1975), faz parte do modus operandi do subdesenvolvimento formas de organização do trabalho com características pré-capitalistas e que convivem com o eixo central do capitalismo mundial através da superexploração do trabalho, retirando toda e qualquer forma de subsistência que não envolva a venda da força de trabalho e a submissão ao mercado interno, que, por sua vez, se submete ao mercado externo.
Por qual razão não podemos deixar de destacar esta realidade num estudo sobre o sofrimento psíquico nas universidades? Porque as universidades assimilam em suas características administrativas e pedagógicas as lógicas de produção da hegemonia burguesa. Isto é, uma lógica que tem como base o neoliberalismo e a adequação compulsória ao mercado de trabalho.
Cabe a nós, sobretudo, a visão crítica dos fenômenos psíquicos, de modo a reposicionar a visão (ver Bock, 1997) de que são naturais e de responsabilidade individual evitando colocar sobre o sujeito uma espécie de culpa pelo sofrimento, pelos desafios econômicos que tem que lidar, pelas dificuldades de aprendizagem que apresenta, pela tristeza e medo que emergem no contexto universitário. Assim estaremos evitando uma:
“Uma Psicologia que ignora a realidade política e social das desigualdades. Uma Psicologia que contribui para o ocultamente da realidade social, na medida em que acredita que esta só pode ser compreendida a partir da realidade individual. Uma Psicologia que enquanto profissão possui uma tônica individualista, voltada para o patológico e calcada na crença de que o indivíduo possui possibilidades de sozinho responsabilizar-se pelo seu processo de individualização.
(BOCK, 1997, p. 40
Desta maneira, nosso estudo precisa ir além de indicações de métodos terapêuticos difusos, que possuem sua eficácia e relevância no tratamento dos transtornos psicológico, mas que, neste contexto, podem mascarar as influências exteriores a universidade que condicionam sua organização interior.
Professores, coordenadores, reitores e todos os que trabalham no âmbito universitário estão dentro de um sistema e devem a instituição uma resposta através dos seus trabalhos. Nos sistemas públicos e particulares de ensino superior já não é novidade a precarização da profissão docente e relações precarizadas de trabalho que inevitavelmente causam adoecimento (ver Reis; Cecílio, 2014).
O que, por fim, significa dizer que o estudante universitário chega a esta instituição e precisa se adequar a ela, dando as respostas que ela espera e agindo conforme as necessidades institucionais, seja financiando de forma privada ou pública o seu funcionamento ou produzindo material científico.
Poderíamos pensar que tudo isso é uma troca justa, mas se olharmos com atenção veremos as pressões institucionais por um tipo específico de produção de conhecimento, muitas vezes focada na produção acadêmica as custas de alunos na iniciação científica que carregam nas costas o peso da ideologia da supremacia do indivíduo, aquele que é entendido sem nenhum contexto que o impulsiona ou retém e naturalmente é o único responsável pelo próprio sucesso e pela qualidade de sua produção.
Uma maneira correta de pensar?
Numa sociedade onde as diferenças de subsistência são tão acentuadas e configuradas num emaranhado de circunstâncias produzidas no capitalismo dependente e periférico este indivíduo de cunho liberal não passa de idealismo e não se desenvolve em características materiais palpáveis a maioria dos brasileiros e latino-americanos.
A fantasia liberal que se desenrola no desenvolvimento científico na periferia do capitalismo adoece, além de desenraizar os sujeitos de suas realidades históricas não produz retorno considerável a classe trabalhadora, aqui utilizada apenas como objeto de estudo científico com a sua aparente “incapacidade” de emergir economicamente, socialmente e politicamente, fundamentando assistencialismos.
Vamos falar de saúde mental nas universidades? Sim. Mas as relações e conflitos que adoecem o ambiente acadêmico são produzidas e isto significa dizer que é de responsabilidade coletiva, por conseguinte. Aqui não cabe um indivíduo liberal e sim um sujeito social que age e transforma sua realidade com sua capacidade de mobilização política. Precisamos, sobretudo, de um:
“Um psicólogo em movimento. Essa deve ser a nossa meta. Um psicólogo aliado da transformação social, do movimento da sociedade e dos interesses da maioria da população. Um psicólogo inquieto, conspirador, que saiba estranhar aquilo que na realidade se torna tão familiar que chega a ser pensado como natural. Um psicólogo em permanente metamorfose. Um psicólogo permeável às inovações que aceite o desafio de, coletivamente, produzir alternativas à Psicologia tradicional”.
(BOCK, 1997, p. 41)
Saiba mais:
BOCK, A. M. B. Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico. Psicologia: Ciência e Profissão, vol 17, n. 2, 1997, p. 37-42.
FERNANDES. F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 2 ed. Zahar Editores, 1975.
REIS, B. M.; CECÍLIO, S. Precarização, trabalho docente intensificado e saúde de professores universitários. Trabalho & Educação, vol. 23, n. 2, 2014, p. 109-128.