Carlos Fioravanti, da Revista Pesquisa FAPESP
Quem anda pela região de Sobral e Juazeiro do Norte, no Ceará, de Catimbau, em Pernambuco, ou Monsenhor Hipólito, no Piauí, provavelmente encontra arenitos, rochas amareladas resultantes da aglutinação da areia. Suas camadas indicam que por ali, há milhões de anos, correu um rio. Além disso, nas áreas hoje planas ao sul, ocupadas pelos estados de Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco, havia montanhas de 3 mil a 4 mil metros (m).
“Os rios que corriam no Nordeste brasileiro entre 480 milhões e 445 milhões de anos atrás eram diferentes dos de hoje”, comenta o geólogo Rodrigo Cerri, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Eram possivelmente entrelaçados e transportavam sedimentos em grandes áreas com leve inclinação, provavelmente sem vegetação.”
Segundo ele, havia uma rede ou sistemas de rios, cada um com 300 a 500 quilômetros (km) de extensão. Maiores, portanto, que o Capibaribe, com 240 km, que nasce no sertão de Pernambuco, atravessa Recife e deságua no mar. Embora com origem diferente, seriam como o São Francisco ou o Amazonas, que nascem em montanhas, respectivamente, em Minas Gerais e nos Andes peruanos, e seguem para o Atlântico.
Há 400 milhões de anos, a região que viria a ser o Nordeste ainda estava unida com o atual norte da África, formando uma unidade geológica contínua, que se estendia até o Oriente Médio, também com rios descendo de montanhas, igualmente extintas. Como o Atlântico ainda não tinha se formado, os rios desaguavam no mar ao norte do atual Nordeste brasileiro e a oeste da África, em trechos onde os dois continentes já tinham se afastado.
A separação se completou há cerca de 100 milhões de anos, quando deve ter se quebrado o último maciço rochoso de cerca de 425 km que unia o atual norte do Rio Grande do Norte e o sul de Pernambuco à costa do que hoje são Nigéria, Camarões e Guiné Equatorial. O Atlântico ganhou então espaço para se formar e se alargar.
Cerri chegou a essas conclusões examinando os arenitos que coletou em 2021 e 2022 em sete bacias sedimentares (áreas normalmente baixas que acumulam sedimentos) do Ceará, Piauí e Pernambuco. Segundo ele, as camadas com arenitos grossos, acumulados durante milhões de anos, apresentam estruturas que indicam a direção do rio depois coberto por outras rochas e pela vegetação.
Na Unesp de Rio Claro, Cerri triturou as rochas e preparou sete amostras, das quais extraiu grãos do mineral zircão, com diâmetro médio de 300 micra (1 micrômetro, plural micra, equivale a 1 milésimo do milímetro). Os cristais de zircão incorporam elementos químicos do ambiente em que se formaram, a partir do magma, o material viscoso que forma o interior da Terra. A quantidade e o tipo de cada elemento indicam quando e em que temperatura e pressão se formaram as rochas que contêm zircão.
Um dos elementos químicos do zircão é o urânio, que, por ser radiativo, se transforma – ou decai – em uma das formas de outro elemento, o chumbo. Rochas mais antigas têm menos urânio (ou mais chumbo) e as mais jovens mais urânio (ou menos chumbo). Um aparelho a laser queimou o mineral e transformou o urânio e o chumbo em vapor. Um espectrômetro de massa determinou a proporção dos dois componentes e, a partir daí, a idade das rochas. Os resultados indicaram que os zircões provavelmente saíram de terrenos mais antigos – e, portanto, mais altos – do que aqueles em que foram encontrados, geologicamente mais recentes e mais baixos.
Segundo Cerri, os rios desapareceram – e foram cobertos por gelo – em razão de uma intensa glaciação no final do período geológico Ordoviciano, entre 445 milhões e 443 milhões de anos atrás, como detalhado em um artigo publicado em junho de 2022 na Geological Magazine e outro da edição de julho da Gondwana Research.
“Há muito se discutia se os sedimentos de rios da bacia do Parnaíba, nos estados do Piauí, Maranhão e Ceará, teriam a mesma origem dos de outras bacias do Nordeste”, diz Cerri. “Estudando o zircão, mostramos que todas as unidades sedimentares poderiam, sim, ter a mesma idade e ter se formado do mesmo modo.”
O geólogo David Vasconcelos, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), que não participou do trabalho, mas estuda as bacias sedimentares do Nordeste, considera essa hipótese válida: “As unidades geológicas mais antigas das bacias sedimentares do Nordeste podem realmente ter tido uma origem comum, apesar dos diferentes nomes regionais do mesmo tipo de arenito”. Segundo Vasconcelos, há 480 milhões de anos, os rios das bacias atualmente isoladas poderiam estar integrados na chamada depressão afro-brasileira, formada pelo atual Nordeste brasileiro e pelo oeste da África, e seria maior que a rede hidrográfica da Amazônia.
“Há uma coerência das informações coletadas, mas não se pode descartar a priori que as bacias do Nordeste tiveram fontes de sedimentos provenientes de vários lugares, porque rochas de mesma idade podem ocorrer em diferentes locais”, observa o geólogo Ticiano dos Santos, do Instituto de Geologia da Universidade Estadual de Campinas (IG-Unicamp). O pesquisador também não participou do trabalho de Cerri e estuda a história geológica ainda mais antiga da região, com pelo menos 550 milhões de anos, especialmente no Ceará. “Na foz do Amazonas, por exemplo, há zircões de todas as idades, vindos dos Andes e de áreas mais antigas que ocorrem ao longo do rio Amazonas.”
Já conhecidas dos geólogos, as montanhas do atual Nordeste brasileiro se formaram em áreas antes ocupadas pelo mar, em consequência do encontro de blocos rochosos da litosfera (a camada superficial da Terra) que se deslocavam em sentido contrário. Uma das áreas altas, a faixa Sergipana, atualmente abrange o estado de Sergipe e parte da Bahia e de Alagoas. Outra, a faixa Riacho do Pontal, ocupa a região limítrofe entre os estados da Bahia, de Pernambuco e do Piauí, na margem norte do cráton São Francisco – cráton é um bloco de rochas antigo que se estende por centenas de quilômetros.
Quem anda pelo interior do Nordeste e não conhece muito de geologia deve tomar cuidado com conclusões apressadas. A Chapada do Araripe, por exemplo, ainda que esteja a mil metros de altitude e tenha 178 km de extensão, não é o resquício de uma montanha, mas o resultado da compressão das estruturas rochosas mais densas que a cercam.
Projetos
1. Geocronologia e proveniência das sucessões basais das bacias do Parnaíba, Araripe, Jatobá e Tucano Norte: Implicações para a origem das bacias intracontinentais do SW Gondwana (no 20/10739-7); Modalidade Bolsas de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Lucas Verissimo Warren (Unesp); Bolsista Rodrigo Irineu Cerri; Investimento R$ 271.323,36.
2. Análises U-Pb e de proveniência sedimentar em rutilos por LA-ICP-MS nas sequências paleozoicas da província Borborema: Bacias do Parnaíba, Araripe e Tucano-Jatobá (no 21/12621-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Lucas Verissimo Warren (Unesp); Bolsista Rodrigo Irineu Cerri; Investimento R$ 156.768,04.
Artigos científicos
CERRI, R. I. et al. The Early Paleozoic sedimentary record in northeastern Brazil: Unravelling the sedimentary provenance and evolution of fluvial systems after the western Gondwana assembly. Gondwana Research. v. 131, p. 237-55. jul. 2024. CERRI, R. I. et al. So close and yet so far: U–Pb geochronological constraints of the Jaibaras rift basin and the intracratonic Parnaíba basin in SW Gondwana. Geological Magazine. v. 159, n. 7. 6 abr. 2021. GOMES, N. G. et al. P-T-t reconstruction of a coesite-bearing retroeclogite reveals a new UHP occurrence in the western Gondwana margin (NE-Brazil). Lithos. v. 446-7, 107138. jun. 2023.
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