Murillo Camarotto -Valor Econômico
Lili, tem torrado aí?
Me dê uma narigada
Mas eu quero dormir
Eu tenho
Mas, porém não dou
Meu torrado é bom
Mas é de meu amor
O seu torradinho é bom
E o seu cheirinho
Logo se destaca
O mais difícil
É arrumar o fumo
Fumo de rolo de Arapiraca
Luiz Gonzaga
Em um dia inteiro de trabalho, o alagoano José Ferreira dos Santos consome cerca de 20 cigarros, hábito que adquiriu em 1968. Diferente da maioria absoluta dos fumantes, ele é adepto do fumo de corda, que durante décadas foi o motor da economia do entorno de Arapiraca, segundo município mais importante de Alagoas e ainda conhecida no Nordeste como a “terra do fumo”.
Mas a fama que em outros tempos levou Luiz Gonzaga a exaltar o rapé feito com o fumo da região em “O Torrado da Lili”, música de Helena Gonzaga e Miguel Lima gravada no fim da década de 50, não tem mais razão de ser. Com o declínio sem volta do tabagismo, os últimos produtores locais estão migrando para a área de alimentos, a fim de atender à crescente demanda interna puxada pela expansão da renda.
Presente nessas paragens há pelo menos 70 anos, a fumicultura dominou por décadas a paisagem rural de Arapiraca, no agreste alagoano. Se o tabaco produzido no Sul do país é voltado sobretudo ao preparo dos cigarros industrializados, a região tem a maior parte de sua oferta dedicada ao fumo de corda ou de rolo, consumido de forma artesanal.
De acordo com o superintendente da Secretaria de Agricultura de Alagoas (Seagri), Hibernon Cavalcante, a área plantada chegou a 45 mil hectares nos anos 70, considerados o ápice da cultura. Atualmente, essa área não passa de 10 mil hectares.
Nos tempos áureos, o tabaco atraiu empresas e gente para a região, que cresceu desordenadamente. Indústrias de corte e de embalagem de fumo se instalaram em Arapiraca, algumas das quais ainda estão na cidade. Apesar de cortarem e embalarem o fumo de corda, essas empresas têm hoje uma atividade bem mais diversificada, especialmente em alimentos processados.
Enquanto o fumo de corda era direcionado ao mercado interno, as folhas eram exportadas para serem utilizadas na composição dos cigarros comuns. “Chegamos a ter 15 exportadoras”, recorda-se Hibernon.
O primeiro grande baque veio na década de 1990. A estabilidade financeira e a intensa propaganda na televisão levaram muitos consumidores do fumo de corda para o cigarro industrializado, processo que se intensificou com a contínua expansão do contrabando de cigarros do Paraguai, que chegavam – e ainda chegam – mais baratos ao país.
Já nos anos 2000, na esteira da queda contínua do número de fumantes, a produção de Arapiraca sofreu um novo golpe. As folhas até então destinadas aos cigarros convencionais deixaram de interessar a indústria. Isso aconteceu, segundo o gerente regional da Seagri, Rui Medeiros, por conta do alto teor de nitrosina (substância cancerígena) do fumo alagoano, em um momento de demanda crescente por cigarros mais suaves. “As partes da planta que iam para a indústria tradicional foram redirecionadas para a corda. O volume aumentou muito e os preços desabaram”, relembra o técnico.
Diante do novo cenário, muitos produtores começaram a abandonar a fumicultura. “Para os grandes ficou inviável, pois a mão de obra é muito cara”, conta Claudionor Isidoro, que optou pelo milho e a pecuária de leite. “Só ficaram no fumo os pequenos e aqueles que não tinham condições de diversificar”, acrescenta.
Outra parcela importante de produtores decidiu investir na mandioca – caso de José Luiz da Silva, que começou a plantar fumo em 1977. Conformado com o fim irremediável do tabaco, ele está intensificando o cultivo de mandioca, mas não desistiu totalmente da antiga cultura.
O produtor planeja algo em torno de 15 hectares plantados de fumo em 2012, metade da área cultivada no ano passado. O negócio, diz, ainda faz algum sentido quando as indústrias da região oferecem preços um pouco melhores.
Essa é a única chance de José Jadielson Alvares, outro antigo produtor de fumo arapiraquense, investir em mais uma safra. Ele acredita, porém, que 2011 foi seu último ano. “Venho diminuindo a área plantada. Não tem mais financiamento para este setor. Até 2009 eu plantava 130 tarefas [cerca de 45 hectares]. Ano passado foram 70 [23 hectares], e neste não sei se vou. A tendência é que não, a não ser que apareça algum negócio muito bom”, disse Jadielson, que também planta mandioca.
De acordo com a Seagri, Arapiraca vive atualmente o auge da cultura da mandioca, com cerca de 20 mil hectares plantados. Além do tubérculo, a área fumageira passou a ser ocupada por frutas, hortaliças, gado e cana-de-açúcar, esta última a principal atividade agrícola de Alagoas.
Impulsionado pelos programas de distribuição de renda, o crescimento do poder de compra da população gerou nos últimos anos uma demanda adicional por alimentos, que se traduziu em oportunidade para os pequenos agricultores do agreste central alagoano. Também “divorciado” do fumo, José Lourenço da Silva tornou-se uma referência regional no cultivo de hortaliças. Hoje, é importante fornecedor de alface, coentro e cebolinha da Ceasa de Maceió.
De acordo com o economista Cícero Péricles, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), com o crescimento da produção local de alimentos, Alagoas está deixando de “importar” uma série de itens de Estados vizinhos, como Bahia, Sergipe e Pernambuco.
Ele critica, porém, a falta de apoio à agricultura familiar de Alagoas, que com incentivo e aparato técnico, poderia crescer e gerar empregos no Estado mais pobre do Brasil.
Enquanto isso não acontece, os produtores vão apostando as últimas fichas nos fãs do fumo de corda, uma espécie quase em extinção. Segundo José Luiz da Silva, os principais mercados consumidores resistem no interior de Estados como Pará, Amazonas, Mato Grosso e, principalmente, Minas Gerais. “Lá em Minas tem muito “cabra véio” fumando corda ainda”, garantiu. Questionado se ele próprio fumava, arrematou: “Deus me livre!”.