Certa vez em uma aula o tema foi: Psicologia como ciência e profissão no Brasil. Logo no início foi feito um alerta: é uma ciência e uma profissão nova e está em construção.
Em seguida, uma imagem foi colocada à turma onde existiam pequenos homens e mulheres construindo uma estrutura feita de tijolo, argamassa e cimento. O conhecimento psicológico se ergueria no trabalho e na dedicação de vários sujeitos em cooperação e solidariedade.
Passaram muitos anos desde que estive nessa aula e, no entanto, o desafio está dado. Não foram dadas as largadas pois não é uma corrida e não foram dadas as mãos pois nem sempre construímos estruturas sólidas o suficiente para sustentar a todos.
Passado o glamour estudantil e as trovas de amores pela ciência do comportamento estamos, de repente, com os tijolos em nossas mãos e os instrumentos para erguer o muro.
A pesquisa, a teoria, a discussão são nossos cimentos e nossas argamassas, já os tijolos são o quanto nós podemos estar com a sociedade em sua materialidade e concretude histórica, eles são o resultado da nossa força de trabalho, o resultado das contradições entre quem é e de quem pode ser o psicólogo(a).
Entretanto, pode o(a) psicólogo(a) transformar enquanto precisa construir a si mesmo?
Os caminhos que emergem das necessidades sociais, políticas e econômicas do nosso tempo nos chamam para o debate sobre quem somos nós e o que podemos oferecer a sociedade.
Não que isto já não tenho sido feito antes, mas hoje, sobretudo, temos um contexto de inúmeros desafios que se colocam em virtude de um momento histórico onde a força política dos “de cima” impede nossa aproximação com os “de baixo”, onde as instituições as quais timidamente nos acomodamos através de muitas lutas subalternizam nossos esforços de enfrentar os dilemas constitutivos da formação social e econômica do Brasil.
Logo, isso nos moveria a compreensões mais apuradas da realidade, nos reuniríamos, certamente, para discutir a profissão e seus caminhos. Solidariedade e cooperação, não é mesmo? Acho que não.
Parece, afinal de contas, que estamos tão bem estabelecidos e estáveis em nossa profissão majoritariamente “liberal” que não é preciso pensar no futuro, pois vivemos de maneira suficientemente independente das relações socioeconômicas e políticas que acontecem à nossa volta.
Será que ignoramos os fatos ou estamos preocupados demais tendo que provar a todo custo que somos necessários? Ou que notas de repúdio de Conselhos Regionais precisam ecoar uma pergunta incômoda “por que nos colocam em poucos editais”? É a prova do esgotamento de nossos caminhos ou de nossa força para trilha-los?
Ainda em tempos de estágio me disseram “as empresas não chamam psicólogos pois consideram profissionais irrelevantes”. Choquei-me! Na graduação indaguei: não somos relevantes? A resposta: essa é uma visão muito antiga, as empresas nos contratam sim e muito.
Será? Não me parece claro, nem me parece legítimo que nossa construção seja esquecida por um momento de glória “empreendedora” e “liberal”.
Aqui a subordinação e a crítica entram em um conflito profundo. Entre os crivos dos testes e o cotidiano capitalista mais doentio as organizações se fecham ao trabalhador e ao trabalho.
A precarização se soma a exploração para gerar lucro e a sombra do psicólogo(a) muitas vezes se alia a lógica capitalista como o templo dos resultados e da eficiência.
“Motive-os! A máquina precisa ser operada, os homens selecionados, as pessoas precisam de liderança e uma gestão!”.
Algo nos conforma no lugar comum, designado por terceiros e quartos enquanto as vozes da sobrevivência anunciam psicoterapia à preço de banana. Os editais? Carregam os salários mínimos e as vagas mínimas, vende-se força de trabalho feito água. Afinal de contas até a água privatizaram.
Eles nos contratam! – Fala um colega contente! Mas dada a conjuntura qualquer coisa serve e servir, sem restrições ou critérios, tem sido a nossa realidade.
Alguém mais se pergunta quais as condições necessárias para um trabalho de qualidade? Será que os horários de serviço são justos? Ou ser chamado de doutor encanta mais que de trabalhador? Ou, que tal, sermos colaboradores? Assim o circulo se fecha. Aí está o liberalismo.
Prática psicológica individual e assistencial é nosso legado de pandemia. Os sujeitos e suas ansiedades e depressões, os sujeitos e suas chagas históricas, os sujeitos que são onde o desamparo é a chave que abre a porta do neoliberalismo à brasileira.