Este setembro chegou encantando as redes sociais com trechos da música de Beto Guedes, Sol de Primavera.
” Quando entrar setembro
E a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão
Onde a gente plantou juntos outra vez”.
Setembro me trouxe um filho, semeou a boa nova nos campos da minha vida até que o assassinato cruel fechou meus olhos ao perdão, porque não seria mais possível plantar juntos outra vez neste tempo terreno, em nenhuma de suas estações.
Assim, setembro me traz saudade. Mas esta saudade é fecunda, alimentada de lutas diárias pela glória infinita do viver!
A saudade é uma energia política, nesta imensa luta contra a distorção do fenômeno assassinato em uma sociedade gerida por forças assassinas e outras intencionalidades.
É muito importante saber e dizer que aquele jovem não morreu. Seu corpo foi matado.
Matar um corpo traz inúmeras mensagens ao mundo dos que convivem com a morte imposta. Tenho me alfabetizado em códigos de poder e manipulação de crenças para seguir lutando contra a morte que criaram para o meu filho.
Algumas vezes permito que escapem em palavras as explicações para os fenômenos que nenhuma estatística nos ajuda a entender, pois o poder está como base de toda destruição de vida, e a sociedade capitalista, liberal, individualista, abre caminho para o percurso da crueldade fazer parte da rotina deste mundo.
Os efeitos dos atos cruéis são longevos, e a sociedade viciada em ganhos criou recursos de compensação para si mesmas, sobre a dizimação de corpos humanos.
Um dos aspectos que analiso é a rapidez com a qual se associam ao assassinato de jovens, sejam estes negros ou não, ao contato e uso de substâncias ilegais. Um drogadito pode ser aniquilado tranquilamente, porque já existe uma margem de expectativas criadas para embutir em números os sonhos implumes.
Quando um corpo jovem verga e tomba sob estampidos o poder avisa ao mundo que um bandido a menos foi contabilizado, portanto, é uma mensagem positiva para a coletividade que se sente aflita por este tipo de presença. Isso não significa que o jovem morto seja bandido de verdade, mas a sua morte ecoa sob esta justificativa aceita e esperada. Na sequência, os verdadeiros bandidos, usurpadores de direitos e muitas vezes empossados em cargos públicos, seguem incólumes vestidos na capa de cidadãos.
A ritualística social para a aceitação da morte como elemento de manutenção do poder violento, não é temática aberta porque tem sido conveniente para pesquisadores, escritores, jornalistas e cidadãos comuns, reforçar a culpa das vítimas.
A mentira toma ares de verdade e um suspiro diz que Deus quis assim. A farsa mantém a estrutura inalterada pelos séculos.
A estrofe da música nos diz que
“Já sonhamos juntos
Semeando as canções no vento
Quero ver crescer nossa voz
No que falta sonhar”
Mas não tem bastado sonhar, precisamos cantar pela vida, na consciência de que nenhuma vantagem terrena será eterna ao corpo que agora nos veste, porque é perecível, e nesta condição, despir os medos e as ambições possui a mesma importância.
As vozes precisam liberar dores, gritos e denúncias até que o gozo inflamado do consumo supere a surdez e ouça essa verdade que bate em tantas portas, através de homicídios e genocídios.
“Já choramos muito
Muitos se perderam no caminho
Mesmo assim, não custa inventar
Uma nova canção que venha nos trazer”
Seguimos chorando quando somos violentados pela cultura da anestesia, pela exigência de complacência para com os violentos e abusadores.
Nestes caminhos se perdem os desamparados e os iludidos.
A nova canção precisa trazer libertação, saber que a história humana é feita de movimentos conhecidos, e Deus não interfere nos rumos da nossa maldade, da nossa indiferença, julgamentos cruéis e mesquinhos.
“Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender”
Meu peito de mãe continua amamentando, nutrindo de amor os afetados pela escassez de coragem, abrindo as janelas da alma consciente, lúcida e ferida no imo, mas amparada pela santidade do que é eterno, aprendendo a fazer diferente cada amanhecer.
Esse setembro nutre a memória do meu filho, e beija com lágrimas seu nome ferido e ensanguentado pela covardia dos cidadãos.
Alexystaine Laurindo é flor eterna, e este sol de primavera é banho causticante na consciência de quem não precisa perdoar, porque decifrou o código da morte e o repudia, todos os dias. Eu, sua mãe.