A visita do deputado federal Arnon de Mello (1911-1983) à Argentina terminou num relatório secreto produzido em dezembro de 1948 para o seu partido, a UDN, e ecoava, com certo exagero, aquilo que já se suspeitava no Brasil: o presidente argentino e general Juan Domingo Perón tinha planos militares de expansão, ameaçando a soberania dos países da América do Sul- principalmente o Brasil.
Outra figura também crescia no meio do povo: Maria Eva Duarte de Perón (Evita), primeira-dama.
Arnon de Mello, pai do ex-senador Fernando Collor, conversou com os opositores do peronismo. Eles associavam Perón a Hitler ou Mussolini. Os líderes nazista e fascista haviam morrido pouco anos antes, em 1945. Já havia suspeitas que Perón recebia, em silêncio, fugitivos nazistas em solo argentino. Suspeitas confirmadas anos depois.
Arnon não fazia uma viagem à toa: a UDN era ferrenha opositora de Getúlio Vargas, que havia dado um golpe de Estado em 1937 e deixou o poder na marra em 1945. Implantou o sucessor, o general Eurico Gaspar Dutra, preparando o terreno para voltar ao poder em 1950.
Especulava-se que Perón financiou a campanha presidencial de Vargas, o que nunca foi confirmado.
O relatório de Arnon sobre a Argentina foi construído em meio a este caldeirão fervente. Intitulado “Relatório Reservado Sobre a Situação Político-Militar na Argentina e Suas Relações Com o Brasil”, reforçou, segundo Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos e nos discursos dos udenistas, as características autoritárias de Perón.
Da viagem para a Argentina e seu retorno ao Brasil, Arnon trazia na bagagem um nome caro à história brasileira: Juan Manoel Rosas (1793-1877), ex-governador da província de Buenos Aires, que implantou um regime totalitário incluindo a expansão das fronteiras argentinas, causando dores de cabeça no Império brasileiro.
Em tempos históricos absolutamente diferentes, Arnon e udenistas ligavam Rosas, Hitler e Mussolini a Perón, que preparava uma guerra contra o Brasil (conclusão tirada em cima do aumento da força das tropas argentinas).
“Esse resgate negativo da figura de Rosas pelos udenistas não parece gratuito. Era de seu conhecimento a existência de intelectuais argentinos que glorificavam Rosas e defendiam o domínio platino da região. Arnon de Mello mencionou o fortalecimento do Instituto Juan Manuel de Rosas, antro dos intelectuais da direita nacionalista, e as palestras de Lúcio Manuel Moreno Quintana, professor universitário e ex-embaixador bastante influente, que estava a difundir a ideia da reconstrução do Vice-Reino do Prata para “recuperar o que nos pertence”. Em seu retrato da Argentina justicialista, Arnon de Mello escreveu: “[…] nunca, como agora, se glorificou tanto a Rosas na Argentina […] Todos os cultores de Rosas estão em postos-chave do governo e do Partido Peronista. O movimento apaixona o Exército”, diz Santos em sua tese de doutorado A construção da ameaça justicialista antiperonismo, política e imprensa no Brasil (1945 -1955), apresentada em 2015 pela USP.
Meses antes da apresentação do relatório de Arnon, os ecos dele pareciam agitar a UDN. O diretório nacional do partido se reuniu em 1 de setembro de 1948- dois meses antes da apresentação do relatório e o deputado estava presente. Em 12 de março de 1949, Arnon participou de almoço na sede da Associação Brasileira de Imprensa com o deputado argentino Arturo Frondizi, líder do partido radical. Havia também outro alagoano, da UDN: Rui Palmeira, e o embaixador Oswaldo Aranha.
A essa altura, o relatório de Arnon, encaminhado ao deputado federal e presidente nacional da UDN José Eduardo Prado Kelly, tinha vazado para Pedro Aurélio de Góes Monteiro, amigo pessoal do presidente da República Getúlio Vargas.
“Como acentuou o Partido Socialista em seu manifesto de 28 de outubro último, assiste a Argentina à execução de um “plano geral para instalar o totalitarismo à crioula, à maneira rosista, ainda que filho putativo do pangermanismo hitleriano, do fascismo mussoliniano e do falangismo franquista”, diz trecho do relatório.
Cerca de dois meses depois- sem citar o relatório- o jornalista Davi Nasser assinou, na Revista Cruzeiro (de Assis Chateaubriand, conhecido de Arnon), uma reportagem com todos os elementos da papelada , mas sem citar a fonte. E estampou a manchete: “Bancarrota argentina”. Perón, disse Nasser, inspirado por ideias nazistas, transformou o país em um grande circo, implantando “o servilismo, a idolatria e o fanatismo entre as massas”.
O presidente argentino preparava ainda uma bomba atômica, rasgaria estradas estratégicas na fronteira do Brasil e implantaria uma ditadura expansionista. O próprio Arnon dizia em seu relatório: “sabe-se que os movimentos armados, as conspirações e agitações verificadas na Bolívia, Peru, Venezuela, Chile, Paraguai e Uruguai foram de inspiração argentina”.
O estardalhaço potencializado por Arnon carregava interesses paroquiais: o governador de Alagoas era Silvestre Péricles, seu inimigo político, e o deputado sonhava em disputar o governo em 1950, o que de fato aconteceu, dois anos após a apresentação do relatório.