Os impasses do contingenciamento

Vê-se, portanto, que a legitimidade do contingenciamento depende, essencialmente, da consistência e credibilidade das prognoses de "queda" de receitas alegadas pelo Executivo

Mansueto Almeida e Alexandre Manoel – economistas do Ipea- Valor Econômico

O aperfeiçoamento da gestão e a busca do  equilíbrio das contas públicas são, indiscutivelmente, preocupações que  vêm marcando o governo da presidente Dilma. Nesse contexto, cabe um  exame mais detalhado dos impactos do contingenciamento orçamentário, uma  prática que tem sido comum no esforço de vários governos de cumprir as  metas anunciadas de superávit primário. O tema é oportuno porque,  recentemente, o governo contingenciou, por meio do Decreto nº 7.680, de  17 de fevereiro de 2012, cerca de R$ 55 bilhões de despesas do orçamento  da União.

O contingenciamento é amparado pela Lei de  Responsabilidade Fiscal, na hipótese (exclusiva) de expectativas de  “frustração” de receita que possa comprometer resultados fiscais, como  as metas de superávit primário. Vê-se, portanto, que a legitimidade do  contingenciamento depende, essencialmente, da consistência e  credibilidade das prognoses de “queda” de receitas alegadas pelo  Executivo.

Contenções de despesas não podem estar fundadas só na lei, mas também em princípios constitucionais

Do  contrário, o decreto de contingenciamento, por ausência de motivação  legítima, se tornaria um ato juridicamente defeituoso. Neste ano, para  justificar o contingenciamento, o governo estimou uma redução de R$ 29,5  bilhões na receita líquida primária em relação às previsões trazidas  pela lei orçamentária anual.

Em 2011, por exemplo, a lei de  orçamento aprovada pelo Congresso previu receitas de R$ 990,5 bilhões.  Naquela ocasião, o executivo, motivando o decreto de contingenciamento,  refez sua previsão de receita para “baixo” e estimou que essas seriam de  R$ 971,4 bilhões. A quatro meses para encerrar aquele ano, o volume de  receitas já havia atingido o montante de R$ 997,4 bilhões, demonstrando  que a previsão do executivo estava “equivocada”. Em geral, essas  inconsistências de prognoses têm ocorrido em vários anos, desde 2000,  com consequências jurídicas e econômicas.

Do ponto de vista  jurídico, há discussões teóricas importantes sobre a atuação do  Judiciário no exame de “déficits” de prognoses de normas. A título de  ilustração, o ministro Gilmar Mendes, do STF, produziu instigantes  artigos acadêmicos sobre a matéria, chamando a atenção para o fato de  que o controle de constitucionalidade comporta o exame das prognoses do  legislador. De fato, conforme a posição dominante da doutrina jurídica  vigente, quando a administração declara o motivo que determinou a  prática de um ato administrativo, fica vinculada à existência do motivo  por ela declarado. Assim, se houver desconformidade entre a realidade e o  motivo declarado, torna-se possível a declaração de nulidade do ato  pelo Poder Judiciário.

Outra dimensão jurídica relevante é a ampla  discricionariedade que marca os decretos de contingenciamento. Se um  ministério, em 2012, teve cortes de R$ 5 bilhões, por exemplo, como se  dá a escolha de quais programas ou ações serão “sacrificados”? Diante do  contingenciamento dos restos a pagar – despesas empenhadas e não pagas  pelo governo -, como se decide quais delas serão “honradas”? Por que o  decreto de contingenciamento inclui ações como “dinheiro direto na  escola para o ensino fundamental” e “atenção à saúde da população para  procedimentos em média e alta complexidade”? Lembre-se aqui que, no  Estado Democrático de Direito, a “discricionariedade” dos decretos de  contingenciamento não pode estar fundada somente na letra da lei, mas,  principalmente, em princípios constitucionais.

Do ponto de vista  econômico, as inconsistências das aludidas previsões geram, entre outras  consequências, diminuição da governança do setor público, pois afeta a  capacidade de os gestores federais implementarem de maneira eficiente  políticas públicas e diminuem a contribuição do superávit primário para a  redução da dívida pública federal.

De fato, quando o governo  federal “erra” nas suas previsões de receitas nos decretos de  contingenciamento, acaba postergando, para muito próximo do final do  ano, a efetiva liberação dos recursos, para que as unidades  orçamentárias empenhem, liquidem e paguem as despesas orçadas. Em  consequência, surgem os restos a pagar, porque já não há tempo hábil  para empenhar, liquidar e pagar várias dessas despesas.

Existem  duas formas de honrar os restos a pagar. Na primeira, são usadas  receitas do atual exercício financeiro, de maneira que os pagamentos dos  restos a pagar acabam concorrendo com outras despesas programadas para o  ano corrente e, assim, termina dando origem a novos restos a pagar para  os próximos exercícios fiscais. Neste ano, por exemplo, o orçamento  para investimento da União depois do contingenciamento é de R$ 55  bilhões; valor inferior aos restos a pagar para essa mesma rubrica, que  está orçada em R$ 57 bilhões. Em suma, o orçamento, que deveria se  orientar para o futuro, torna-se também uma peça de planejamento do  passado, diminuindo, portanto, a governança federal.

A outra forma  de pagamento dos restos a pagar dá-se pelo aumento de endividamento,  por meio do lançamento de títulos no mercado. Diga-se, por oportuno,  que, contabilmente falando, os restos a pagar não “entram” nas apurações  tradicionais de dívida (dívida bruta ou dívida líquida do setor  público), que são os indicadores divulgados sobre a saúde financeira do  setor público. Ora, quando o governo lança mão de títulos para honrar os  restos a pagar, estes acabam se transformando em operações de crédito,  agora, sim, ampliando, por exemplo, a dívida bruta do governo. Esse  incremento de dívida pressiona o governo a obter mais superávit,  inclusive por meio de novos contingenciamentos, criando-se um verdadeiro  círculo vicioso.

Em suma, o superávit das contas públicas, que  deveria ser utilizado para efetivo pagamento dos juros e amortizações do  estoque da dívida, acaba por “atender” também a essa nova dívida,  criada pela emissão de títulos destinados aos restos a pagar. Essa  prática pode, inclusive, ser um dos fatores que explicam a resistência  da queda dos juros da economia, mesmo diante de “expressivos” superávits  primários.

Há, portanto, amplo espaço para que a prática de  contingenciamento de despesas no Brasil seja revista. No campo  econômico, cabe introduzir regra de efetivo controle do crescimento do  saldo dos restos a pagar. Na esfera jurídica, exige-se que os decretos  tenham motivação consistente e maior legitimidade democrática, já que o  contingenciamento transformou-se em poderoso instrumento de política  fiscal, sem, no entanto, submeter-se aos crivos da deliberação pública  ou parlamentar.

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