Os desafios da Lei Maria da Penha

Como pudemos conviver tanto tempo com isso, sem que houvesse uma legislação específica para tratar do tema?

Atalá Correia-Professor do Instituto  Brasiliense de Direito Público (IDP), mestre em direito pela USP e juiz  de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios  (TJDFT)-Correio Braziliense

Há motivos de sobra para se assustar com os dados  estatísticos relativos à violência doméstica, realçados a partir da  promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7/8/2006). De  janeiro a novembro de 2011, foram registrados pela polícia 10.171 casos  em todo o Distrito Federal, mais de 900 por mês, aproximadamente 30 por  dia. E os números representam apenas a pequena parcela de ofensas,  ameaças, lesões corporais, estupros e homicídios que chegam ao  conhecimento das autoridades.

Como pudemos conviver tanto tempo  com isso, sem que houvesse uma legislação específica para tratar do  tema? A resposta, nada evidente, é: somos uma sociedade muito mais  machista do que ordinariamente imaginamos. Nunca havíamos nos dado conta  de tamanha calamidade. Basta isso para constatarmos que a Lei Maria da  Penha representa um indescritível avanço para concretizar direitos  fundamentais das mulheres.

Ocorre que a promulgação de leis e a  formação de estatísticas não são fins em si mesmos, mas meios para que  se alcance um fim maior, qual seja, o combate e a redução desse cenário  de violência doméstica. Passados mais de cinco anos desse marco  regulatório, ainda há muito a avançar. Apenas um dia de trabalho com as  vítimas revela que a violência doméstica tem raízes em profundos  distúrbios familiares, sociais e psíquicos, para os quais a lei, a pena e  a prisão são remédios, no mais das vezes, insuficientes.

A grande  maioria delas sofre ao lado daquele que ama, ou pensa amar. Essa  especial característica da violência doméstica é chamada de duplo  vínculo. Faz com que a vítima escolha manter-se próxima do agressor,  muitas vezes sob a ilusão de que aquele episódio não se repetirá, de que  aquela foi a última vez ou, ainda, de que há conserto para a situação.  Em muitos casos, a violência cessa — ou tem tudo para cessar — com o  divórcio, mas essa não é uma escolha plausível. As vítimas não desejam  se divorciar, não querem a punição do agressor. Simplesmente anseiam que  cesse a violência, assim como o frequente abuso de álcool e drogas por  parte dos agressores.

O duplo vínculo explica por que muitas  vítimas se retratam da reclamação apresentada contra seus ofensores, por  que um sem número delas sofre reiteradas lesões antes de denunciar a  situação, e por que algumas permanecem ao lado dos agressores enquanto  eles cumprem a pena. Há dupla vitimização. A mulher sofre na pele a  violência doméstica e, em razão de sua especial situação de dependência,  não consegue por meios próprios desvincular-se do agressor.

A  jurisprudência de nossos tribunais até poucos dias atrás não era  sensível a essa peculiaridade. Predominava o entendimento de que, dada a  notícia da ocorrência de lesões corporais à polícia, a mulher poderia  se retratar, colocando um ponto final no processo criminal contra seu  agressor. Em 9 de fevereiro, julgamento do Supremo Tribunal Federal  (STF) esclareceu que era equivocada a interpretação da lei que vinha  sendo feita. Agora, prevalece a interpretação de que, após a comunicação  do fato à polícia, as autoridades devem investigar e punir o agressor  independentemente da vontade da vítima. Protege-se a mulher das pressões  que contra ela possam ser exercidas. No entanto, como qualquer decisão  judicial, a manifestação do STF se limita a corrigir os caminhos pelos  quais se interpreta a lei. Ela não extrapola, nem poderia, o aspecto  jurídico do problema.

Uma lei rigorosa é necessária, mas  insuficiente para lidar com a violência doméstica. É necessário  implementar políticas públicas que permitam restaurar harmonia no seio  familiar e emancipar as mulheres social, econômica e psicologicamente.  Os avanços a serem perseguidos devem ser intensificados com o  fornecimento amplo e gratuito de apoio às famílias envolvidas.  Psicólogos e médicos certamente detêm ferramentas mais apropriadas para  tentar restabelecer, se possível, alguma harmonia no seio familiar.

O  Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios conta com uma  rede de profissionais de saúde amplamente capacitada para o apoio aos  envolvidos em tais casos. Mas o papel desses profissionais, no âmbito do  Judiciário, só se dá após a criminalização da violência doméstica. Essa  atuação deveria se dar de forma preventiva, em postos de saúde e  hospitais, para que seus esforços encontrem a família antes que a  desarmonia se transforma em violência.

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