O psicólogo do povo: questões sobre saúde e política

Tomando como ponto de partida um sujeito humano em que a ação modifica o mundo e o mundo modifica o sujeito reciprocamente, ou seja, um sujeito humano que constrói conjunturas e possibilidades através do trabalho, da atividade, do seu movimento, isso nos distancia da necessidade de acomoda-lo, ou torna-lo estático. De certo, este sujeito que comporta elementos complexos, porque a realidade é complexa e contraditória, será multideterminado e o foco da análise deve partir desta premissa.

Considerando uma conjuntura histórica como a nossa, de grandes dificuldades e crises, de disputa por hegemonia cultural e política das classes dominantes, a centralidade da saúde mental e da saúde como um todo, é deixada de lado. É escamoteada pela realidade dura que se apresenta como inevitável e invariável. Em sociedades como a alagoana, que agrupam elementos arcaicos como constitutivos de seu processo histórico, alguns movimentos da história social podem gerar grandes “nós” na superação de certas contradições, evitando supera-las por um salto qualitativo na configuração da totalidade social.

Alguns fenômenos socioculturais, entretanto, devem ser observados com cautela, mas com o rigor necessário para a sua compreensão. Isto é, todo e qualquer fenômeno sociocultural diz respeito a totalidade das relações sociais de determinado território, que corresponde necessariamente a elementos extraterritoriais, mas que se aglutinam na constituição do real, na objetividade das relações que aqui se desenvolvem.

Desta forma, os estudo que visem contemplar a realidade alagoana não podem evitar um percurso que se direcione a tendências locais de conservação da pobreza e da miséria, assim como a imbricação de um complexo cultural e econômico agrário que fundamentam permanências históricas, ou melhor, a conservação de tendências como a concentração do poder político em figuras, símbolos familiares e de parentesco como legitimidade de poder e conformação da forma de dominação arcaica pela raiz servil, pelo deslocamento dos sujeitos humanos numa “inferioridade” compulsória e violenta.

Isto é, para pensar a relação objetividade/subjetividade em Alagoas nossa atenção deverá constar nos aspectos caros a dominação política das maiorias pobres e deserdadas, onde o conteúdo imagético/representacional do poder político é necessário ao rico patrono, ao senhor que remonta tempos arcaicos mas que, também, encontra ecos contraditórios em pequenos feixes de modernidade. Acomoda-se o antigo para aderir ao novo em configurações genuinamente contemporâneas, ganhando tonalidades “naturais” e “sem esperança” no território de paisagem pouco oscilante, aparentemente estática e alienante.

O conteúdo psicossocial da pobreza em Alagoas, com suas raízes longínquas e complexas, produz efeitos na saúde da população. Efeitos nas características onde se apreendem os aspectos da realidade que objetivariam outras condições de vida e criariam outros caminhos possíveis para a sobrevivência. O poder estatal cumpre um papel na dominação, na exclusão e contenção das camadas populares. Os freios na distribuição da riqueza encontram pequenas brechas através de práticas assistenciais e pedidos submissos na hora da necessidade, que de longe são eficazes, mas retornam na conservação do que sempre foi.

A figura pública que representa o poder é o braço e a mão que concede bonanças aos “seus”, onde coloca cabrestos e criam currais de função específica nas eleições municipais e estaduais. Estes elementos formam, através de uma unidade complexa de fatores, a concretude da vida (material e subjetiva) somando-se a resignação, muitas vezes resignações “alegres” e aparentemente não sofridas. É preciso entender que, nas Alagoas, a alegria na servidão carrega elementos contraditórios na constituição subjetiva dos sujeitos. É contraditória pois o que aparece como alegria ao servir geralmente nega um dia a dia de dificuldades, humilhações e perseguições. Os sujeitos entram em simbiose com o símbolo do poder, é agraciado com a “alegria” de servir e obter o retorno em pequenos ganhos matérias e, às vezes, o prestígio e status social.

O psiquismo do trabalhador alagoano, encontrando esses aspectos tão entranhados na cultura e na estrutura das relações de produção da vida, não se apercebe das marcas da opressão e do substrato ideológico da violência institucional, mas, entretanto, o dia a dia aparece como natureza, como a vida por si mesma. Retratos do cotidiano e da sobrevivência que são contraditórios pois por mais que avance ou recue na história sempre sobressaem estes elementos típicos, traços que perduram na atividade humana desta territorialidade. Estes aspectos permanecem, pois, carregam sentido social na configuração da realidade.

Não é de se espantar que o psicólogo local esteja envolto nestas estruturas, não por falha moral ou intenção subjetiva, mas por sua sobrevivência material e social. É interessante entender que a dinâmica do fenômeno coronelista¹ em Alagoas se dá nas municipalidades, na negociação de cargos e na troca de favores, na relação que eleva o psicólogo a cima do povo, pois é próximo do chefe local.

Não é estranho, mas no mínimo problemático que isto se reproduza nas relações de trabalho do psicólogo sem estudos sistemáticos sobre o tema. Para isto devemos incluir uma inflexão metodológica que mesmo podendo se distanciar da Psicologia, procure compreender que aqui existem sujeitos com determinações históricas complexas e que o trabalho do psicólogo deve atender a este sujeito e neste contexto.

O profissional psicólogo, entendido como sujeito histórico, como profissional que se compreende como ser social e por isso imerso na construção de sua realidade social de maneira fundamental, na intenção de uma práxis transformadora, pode favorecer a conscientização destas questões constitutivas de sua concretude histórica.

E ainda destaco que psicólogos do povo, aqueles que se encontram no meio das contradições da sociedade, desemparados, desempregados, experienciando seus sofrimentos e desesperanças, entendendo que Psicologia por amor abstrato e idealista não se materializa em “sucesso econômico e social”, apenas estes psicólogos organizados e críticos podem alcançar a superação das contradições da Psicologia regional de Alagoas. Esta direção, se for tomada com compreensão da realidade, com sagacidade teórica e ação política organizada pode trazer ganhos.

Não diria que é possível reformar a Psicologia em Alagoas, mas entender a raiz da hegemonia de algumas práticas e das relações que perpassam suas tendências teóricas, epistemológicas e éticas é o ponta pé para a crítica que vise o desenvolvimento ético-político do profissional.

Retornando a questão da saúde mental, haveremos de nos perguntar sobre quais caminhos podemos rever práticas e expandir nossas possibilidades desde este território. Ou seja: onde entrariam, então, o fazer humano de Alagoas no quefazer² do psicólogo de Alagoas e de que forma cortadores de cana, pequenos agricultores e pescadores, artesãos, pequenos comerciantes e habitantes de comunidades rurais entrarão no horizonte de trabalho do psicólogo?

Se a inserção na sociedade é o nosso desafio principal, nosso primeiro giro crítico deve orientar-se a partir do povo, superando a relação de oposição entre “o povo” e “o psicólogo”. O psicólogo então, não deve mais ser aquele que olha “o povo” de longe, mas entender que ele só se constitui psicólogo porque existe o povo que o olha de volta.

¹LEAL, V. N.  Coronelismo, enxada e voto. 2 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.

²MARTIN-BARÓ, I. O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, vol.  2, n. 1, 1996.

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