O jurisconsulto, o juiz e outros juízes

Luiz Gonzaga Belluzzo- Valor Econômico

Trepidante a entrevista do ministro Luiz Fux concedida a Mônica Bergamo. Corrijo. A entrevista foi solicitada à jornalista pelo próprio entrevistado. Publicada na edição de 2 de dezembro da “Folha de S. Paulo”, a entrevista foi o assunto dos jantares de domingo.

Entre as mastigações de um desses regabofes, ouvi certo jurisconsulto entretecer seus espantos com as revelações do ministro. Não os espantos raivosos das personalidades narcisistas que vomitam suas certezas nas colunas do leitor, nos Facebooks e Twiters da vida. Eram espantos que se movem entre a ironia e o ceticismo, como os que frequentam as páginas das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Em seu périplo de candidato, Fux prometeu a quase todos os ministros do atual governo “matar no peito” o processo do mensalão. No dia de sua indicação, nos pícaros da ansiedade, queixou-se ao motorista: “meu Deus do céu, acho que essa eu perdi”. Para completar o circuito de expressões pós-modernas, só faltou exclamar: “chegou minha vez” ou na versão mais popular, “é nóis”. Assim Fux se incumbe de esculpir sua própria imagem.

Exposta ao impacto da indústria cultural, nossa sociedade passou de iletrada e deseducada a massificada

O capítulo 139 do romance de Machado de Assis é intitulado “De Como Não fui Ministro d”Estado. Está em branco. O capítulo seguinte, 140, denominado “Que Explica o Anterior” sentencia: “Se a paixão do poder é a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da Câmara dos Deputados.”

O jurisconsulto contrastou a esfuziante egotrip do magistrado Fux com o discurso de despedida de outro juiz nos idos de 1965. Uma coincidência biológica me proporcionou a ventura de frequentar as lições desse juiz durante sessenta anos. Pouco antes de sua morte, roguei que me entregasse seus discursos, poesias não publicadas e sentenças prolatadas. Cedeu. Sua modéstia e recato me cobraram energicamente o compromisso de não divulgar os escritos.

Prometi. Mas, para revigorar o superego, cultivo o hábito de confabular à noite com seu espírito. Na passagem de domingo para segunda, pedi licença para revelar um trecho, apenas um trecho, de um de seus discursos. Antes de conceder, brandiu argumentos a respeito da inutilidade do cometimento. Na essência ele dizia que a sociedade e os indivíduos de hoje não compreendem os significados de ontem.

Diante de minha insistência, quase chegou à irritação. Antes de concordar com a novação do contrato firmado anos atrás, arriscou uma última cartada. Recitou alguns parágrafos do livro “Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna”, ensaio escrito a quatro mãos por João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais.

Entre recriminações à minha teimosia e críticas ao meu descuido com as observações de meus dois amigos, o velho juiz recomendou o trecho de sua preferência. Exigiu sua publicação como uma espécie de preâmbulo a seu discurso. Aí vai:

“Exposta ao impacto da indústria cultural, centrada na televisão, a sociedade brasileira passou diretamente de iletrada e deseducada a massificada, sem percorrer a etapa intermediária de absorção da cultura moderna. Estamos, portanto, diante de uma audiência inorgânica que não chegou a se constituir como público; ou seja, que não tinha desenvolvido um nível de autonomia de juízo moral, estético e político, assim como [não progrediu na construção] dos processos intersubjetivos mediante os quais se dão as trocas de ideias e informações, as controvérsias que explicitam os interesses e as aspirações, os questionamentos que aprofundam a reflexão, tudo aquilo, enfim, que torna possível a assimilação crítica das emissões imagéticas da televisão e o bombardeamento da publicidade.”

Escolhi o discurso de 1965 proferido por ocasião de sua aposentadoria. Aposentou-se por temer a invasão de suas prerrogativas de juiz independente por um esbirro fardado das oligarquias golpistas. Nada de heroico, apenas submissão aos valores liberais e republicanos que guiaram sua vida desde os tempos da Faculdade de Direito de São Paulo.

Ele falou aos amigos que o homenageavam: “Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes; não suportei afetações; as cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes, jamais encontraram agasalho em mim; em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões; – dentro de uma humildade que ganhei no berço, abominei a egomania e a idolatria; não me convenceram as aparências, e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. No exercício das minhas funções de magistrado diuturnamente, dei o máximo dos meus esforços para bem desempenha-las, – e, ainda que em meio de uma atmosfera serena e compreensiva, em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo; escapei de juízos temerários, tomando cautelas para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão; – e, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência.”

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