Laércio N. Farina e Fernanda M.Q. Farina são, respectivamente, advogado especialista em direito da concorrência e titular do escritório L. Farina Advogados; mestranda em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo- Valor Econômico
Nas derradeiras semanas de 2011, uma notícia chamou a atenção para uma questão já há muito debatida nos bastidores do mundo do direito da concorrência: poderia o Judiciário rever o mérito das decisões tomadas por agências reguladoras e autarquias em processo administrativo próprio?
Em dezembro, o juízo da 4ª Vara Federal do Distrito Federal anulou uma decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Cade, que condenou 21 laboratórios farmacêuticos por formação de cartel contra a entrada de medicamentos genéricos no mercado nacional. A investigação iniciou-se em 1997, tendo o processo administrativo findado em 2005.
Após seis anos da condenação pelo Cade, e mais de 14 anos do início das investigações, o Judiciário, ainda em primeira instância, revalorando as provas produzidas na seara administrativa, entendeu que: “De concluir-se, por todos os fundamentos acima esposados e com base nos abalizados pareceres e decisões aqui referidos, que não houve nulidade na tramitação do processo administrativo, havendo, no entanto, total incoerência e ausência de lastro real na decisão proferida pelo Colegiado”.
A decisão judicial afastou todos os argumentos levantados pelas partes de que haveria nulidade no procedimento administrativo, seja por ofensa ao princípio do contraditório e da ampla defesa, seja por incorreção na instauração do ato administrativo. Não obstante, entendeu que as provas haviam sido mal valoradas, e que não havia prova do cartel, revendo, assim, o mérito da discussão.
Não é eficiente que o Estado deixe de confiar no exame realizado por ele.
Dessa decisão, o Cade ainda pode apelar, o que dará ensejo a uma primeira decisão do Tribunal Regional Federal (TRF). Dessa, ainda há recursos internos ao Tribunal, bem como para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF). Ou seja, a causa ainda está bem longe de terminar.
Esse é o cerne da discussão aqui brevemente apontada (e não especificamente a questão do cartel dos laboratórios): de acordo com os princípios administrativos carreados na Constituição Federal, poderia o Judiciário rever o mérito das decisões tomadas em processo administrativo pelas agências reguladoras e autarquias, tais como o Cade, a Anatel, a Aneel, a Anac, entre outras?
A resposta que nos parece mais adequada é que não.
A administração pública está submetida a diversos princípios, dentre os quais se destacam o da presunção de legalidade, especialidade, razoabilidade, motivação e, finalmente, o da eficiência. Ou seja, as entidades da administração pública devem, sempre, atuar de acordo com a lei que as rege, em sua especialidade, aplicando em seus processos e procedimentos a razoabilidade, proferindo decisões motivadas, e buscando sempre uma atuação eficiente.
Essa última característica, no entanto, parece incongruente com a ideia de uma entidade estatal poder rever o mérito da decisão tomada por outra, especialmente quando esta última é uma autarquia, altamente especializada, com profissionais qualificados para aquela tarefa específica. Não é eficiente que o próprio Estado deixe de confiar no exame realizado por ele próprio em um processo que tramitou sob os prismas da motivação, da razoabilidade, da legalidade estrita, bem como dos demais princípios constitucionais, como a ampla defesa e o contraditório.
Isso não significa afastar do Poder Judiciário a guarda da Constituição Federal, ou do controle da legalidade. Ou seja, não há se impedir que as partes levem ao Judiciário discussões relativas a eventuais falhas legais no processo administrativo – como ausência de motivação da decisão, falta de contraditório, ampla defesa, colheita ilegal de provas etc. Ainda, é inegável caber ao Poder Judiciário a análise da constitucionalidade das normas.
O que não se coaduna com os princípios que regem a administração pública é a possibilidade de o Judiciário rever o mérito das decisões tomadas por órgãos especializados, retirando deles sua discricionariedade técnica. No português mais coloquial, é uma total perda de tempo. Se o mérito dessas questões pode e, portanto, será inegavelmente rejulgado pelo Judiciário (porque não se espera nada diferente da parte que saiu perdedora, senão recorrer a quaisquer meios que possua para reanálise do caso e retardamento do resultado), não há racionalidade em se onerar o tesouro com a manutenção de um corpo de profissionais especializados, altamente gabaritados, e treiná-los, se toda a questão será novamente revista. É um evidente desperdício de dinheiro público.
O Estado deve usar de forma racional e inteligente seus recursos e seu pessoal. Esse é o comando constitucional. A decisão adotada por um órgão especializado deve ser respeitada, especialmente pelo próprio Estado. Evidentemente que isso não significa que o Judiciário não deva ser chamado para avaliar se houve nulidade processual ou eventual inconstitucionalidade. Mas rejulgar o mérito, não é, como pensam alguns, dar cumprimento ao disposto no artigo 5º, XXXV da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.