O governo da maioria com respeito às minorias

A Venezuela enfrenta a estagnação e paralisia política em função da doença grave que acomete o presidente que centraliza todos os poderes, manda e desmanda sem qualquer controle, apoiado pela massa refastelada em precárias benesses

Lázaro Guimarães-Magistrado e professor-Correio Braziliense

O olhar atento aos acontecimentos recentes na Venezuela, Rússia e Síria e sua comparação com a realidade política brasileira dão a exata dimensão de que a Nova República, com a Constituição de 1988, graças à profundidade dos princípios e regras de proteção dos direitos fundamentais e à interconexão dos poderes, reconduziu o país ao trilho da democracia.

A Venezuela enfrenta a estagnação e paralisia política em função da doença grave que acomete o presidente que centraliza todos os poderes, manda e desmanda sem qualquer controle, apoiado pela massa refastelada em precárias benesses. Hugo Chávez é candidato a mais uma reeleição, sofrendo de recidiva de câncer, sem que se tenha ideia de quem poderá substituí-lo como líder da facção majoritária. Tudo indica que, uma vez eleito, não haverá quem consiga superar o abismo que se formou entre as elites e as camadas populares.

A Rússia acaba de eleger Vladimir Putin, após 12 anos no poder, alternando a presidência e o artifício da condição de primeiro-ministro todo-poderoso. Os já tradicionais protestos de rua e alegações de fraude não podem esconder o tamanho do sufrágio de 64% do eleitorado. O ditador ganhou, não há dúvida, apesar da repressão violenta dos opositores e da má fase econômica, determinada pela queda nos preços do petróleo e da recessão europeia, graças ao controle maciço da televisão e do rádio e à ressonância da sua maneira de governar à alma camponesa, à cultura acomodada que ainda domina as populações do imenso interior gelado, no mesmo grau das épocas do czarismo e do stalinismo.

O povo russo ainda se divide entre uma elite altamente educada, a mesma que gerou Dostoievski, Tolstoi, Gogol e chegou a dominar a corrida espacial, e uma massa envolvida nas sombras, desligada dos avanços tecnológicos, alienada, sustentada a pão e vodca. O escritor Mokhail Chichkine, em artigo para Le Monde, mostra como ao longo dos séculos o seu país apresenta duas correntes antagônicas em luta pelo poder: “Para a primeira, a ordem só pode ser assegurada na Rússia por uma mão de ferro, por um czar ou um Stalin. Para a segunda, toda a história russa não é senão uma cloaca sangrenta da qual é preciso sair para adotar um regime liberal à europeia” (tradução livre).

A Síria assiste ao esmagamento da resistência sunita ao poder monstruoso de Bachar Assez Assad, que tem o apoio da minoria alauíta, de forte poder econômico. Lá, a maioria sunita não governa e passa a ser massacrada por postular a abertura democrática. Homs, centro da luta dos oprimidos, está aos destroços, com milhares de cadáveres espalhados pelas ruas.

A comparação com o quadro político brasileiro pós-redemocratização se impõe para revelar a excelência do estado democrático de direito. Desde o governo Sarney, passando por Collor, Fernando Henrique, Lula e, agora, Dilma, a tônica é o equilíbrio dos poderes e o respeito às minorias. O Executivo forma seus quadros dirigentes à base das indicações dos partidos da situação, o Legislativo se mostra atento às reivindicações populares, às vezes até de forma periclitante para uma parcela considerável de políticos, como ao aprovar a Lei da Ficha Limpa, e o Judiciário procura cumprir o seu papel de guardião da Constituição e da lei.

Houve momentos em que surgiram oportunidades aos presidentes da República desse período de abandonarem a rotina democrática e se revestirem de autoridade autocrática. Isso ocorreu, por exemplo, no auge da popularidade do Plano Cruzado; na superveniência da crise econômica asiática, quando o Plano Real ainda dava ampla sustentabilidade a Fernando Henrique; e quando se cogitou da apresentação de emenda constitucional permitindo nova reeleição de Lula. Prevaleceu, contudo, o bom senso e a compreensão de que a tirania não combina com o jeito do povo brasileiro, esse jeito que, segundo os filólogos, não tem tradução. É como o privilégio de fazer samba, na belíssima metáfora de Noel Rosa.

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