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O Feminino (e a pandemia) por Maria Cristina Rivé

O estudo das Leis Morais contidas em O Livro dos Espíritos traz às criaturas, numa primeira leitura, o questionamento? Aonde tudo isso nos leva? Amor, caridade, justiça, conservação, destruição, sociedade, progresso? Onde? Não se vê, nem se sente o amor e a justiça. Caridade, nesses tempos, nada mais é que do se desfazer de entulhos que cansam os olhos e entopem nossas casas. Conservação de valores retrógrados e excludentes é nítida nesses dias de “outrora” – se alguém ler esse texto entenderá essa ironia? Destruição queima esse país “cristão”, onde Jesus, provavelmente, temeria pisar nessas plagas. A crucificação não seria somente de seu corpo, mas, virtualmente, seria arrasado. Talvez não mais morto na cruz, todavia o sofrimento moral seria indefectível. Já o progresso é uma luz no fim do túnel, por ora meio apagada.

Mas, em meio a esse desencanto, a Doutrina Espírita nos instiga a pensar. É uma filosofia e como tal é instrumento transformador. Da sociedade ou do ser? Dos dois. E é com o olhar perseverante, atento que se começa a entender o significado de determinadas assertivas insertas nos textos kardecianos.

As Leis Morais iniciam na Criatura. É no caos que se inicia a transformação, o primeiro passo está na Lei de Destruição dos atavismos, “miasmas morais”, que acompanham os habitantes deste Planeta. E é preciso que haja a destruição, uma violenta destruição de valores recheados de preconceitos e de asco àquilo que não seja o conhecido e o pretenso adequado às nossas convicções, mesmo que essas sejam contrárias àquilo que Jesus de Nazaré veio mostrar e ensinar a todos os que querem ver, ouvir, entender e viver essa mensagem.

Mas, negar o progresso é uma das marcas mais fortes desses tempos bicudos, em que o desamor e a falsidade são expressos em nome de Deus. Basta vociferar, expressar-se em palavras cruéis, odiosas, mentir descaradamente, menosprezar instituições democráticas, as quais, por mais capengas, serão elas a ajudar no progresso social, pois permitirão a livre expressão de ideias e com ideias será possível o debate e com o debate a destruição do velho, do que não mais de adéqua a tempos novos, tempos de transformação. Tempos em que o egoísmo dará lugar à fraternidade e a solidariedade será a vivência normal de uma sociedade que está se curando.

É, mas 2020 chegou. E com ele uma doença. Para uns, espíritas inclusive, uma gripezinha. Nada que a boa Cloroquina deixe de curar, obviamente em nome de Deus. Para outros, uma doença grave, portanto é preciso se cuidar e preservar a vida. Como diminuir os efeitos? A Organização Mundial da Saúde expôs protocolos produzidos por cientistas aptos a tal. E acredita-se em quem? Seria o maniqueísmo da Covid – 19? Ora, bem simples: a ciência analisa, experiência, estuda e conclui. Não é o achismo simplório de quem não se importa com a vida, em especial com a vida dos desvalidos, que se deve seguir. Pesquisas indicam maior incidência da doença e de mortes em moradores de zonas mais carentes. Se o vírus não escolhe quem atacar, o poder material pode definir quem terá mais chances de cura. Isso é algo a se pensar.

Os habitantes da Terra ainda não tínhamos vivido isso, pelo menos nesta existência, contudo não se pode negar. A maioria não sabemos como agir. Brotam incertezas e depressões. É a alma mostrando-se doente. E a cura é necessária. Para que ela ocorra, é preciso aceitar-se doente e entender-se.  A pandemia é uma oportunidade de destruição, destruição interna, de valores, construções, sentimentos, dogmas. É nos caos que o universo surge e com ele as novas percepções da criatura, da sociedade. A mulher se redescobre, ressurge, se cria como indivíduo, que em meio a tantos afazeres depara-se com muitos outros neste tempo. São os filhos, o trabalho, o companheiro, os vizinhos nessa ordem? Não se sabe. Cumprir os compromissos. Sem ser as sombras, mas protagonistas como todos assim devem ser. Não é à frente, nem atrás. É ao lado que modificaremos o status quo, entendimento que os valores e as importâncias estão em todos os seres vivos. Continuar a cultura de exclusão do feminino não é mais possível.

Como sempre o passado pode nos ensinar. Vamos sucintamente relembrar? Como a misoginia se estende pelos tempos? Um dos livros mais vendidos diz que Deus criou o homem e de sua costela fez a mulher? Quem escreveu? Aqui, a autoria não é prioridade, mas a ideia sim. É como se o homem fosse descendente direto do Criador e a mulher, do criado. Não entendemos. Todavia, podemos retificar esse pensamento e conseqüentes ações dolorosas que dele decorrem.

“Chora como mulher, por aquilo que não soubeste defender como homem.” Palavras de mãe ao seu filho sultão, quando esse, Boabdil, entregou Granada aos reis católicos. Quanto equívoco e quanta misoginia contida nessa pequena frase. Contudo, ela sintetiza o pensamento de muitos e nós mulheres vamos ajudar a mudar.

Na linha histórica, podemos definir a participação da mulher em simples frase: as mulheres somos silenciadas? Para iniciar a resposta citamos Simone de Beauvoir, filósofa francesa: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Procuramos aprender, dentro de uma sociedade de homens, tornarmo-nos mulheres, ou seja, abrir o caminho a cada dia, a cada palavra, a fim de ratificar a nossa contribuição para o desenvolvimento da estrutura social em que todos vivemos. Abrir espaço, em especial, com seres ora em corpos femininos, mostrar o quanto temos que construir nesta sociedade excludente e arrogante.

A história do ser humano, contada sob a ótica masculina, nos leva a crer que a mulher teve papel secundário no desenvolvimento humano. Parece que não possuímos, nem construímos o plano em que estamos como se silenciadas e sem memória dentro de uma estrutura fundada para que o homem se sobressaia, mesmo que a custa da subjugação do suposto “sexo frágil”.

Nossas contribuições são irrelevantes? Marie Curie, Nobel de Física e de Química, uma vida em um laboratório junto a sua família, não desempenhou o suficiente? Joana D’Arc e suas vozes libertadoras da nação francesa não preparam o caminho para a mudança necessária à chegada da Luz transformadora do Planeta? Patrícia Galvão, poeta e ativista política, primeira mulher, aos quinze anos, presa política do Brasil, não lutou o suficiente para iniciar a participação da mulher no cenário político-social, demonstrando, também, a força da poesia modernista? Leila Diniz e sua linda barriga a desfilar pelas praias cariocas a mostrar a vida que corre e que passa pelo feminino. Olga Benário, exilada por defender suas convicções, não viveu a força feminina no cenário mundial?

E o que falar de todas as mulheres, as quais deixaram em cada ser a impressão do trabalho que o Criador lhes confiou? Esse segundo sexo camuflado nesta sociedade hostil, a qual define o que deve ser o feminino e como deve se portar e em quais áreas pode ser reconhecido?

Michelle Perrot, filósofa francesa em seu aforismo: “no teatro da vida as mulheres são uma leve sombra” e por quê? Se a força do Homem é visível no seu corpo estruturado para tal? Onde o entusiasmo da mulher que impele suas crias ao Bem e à realização na estrutura social em que estamos. A vocação natural da mulher é o seu desenvolvimento psíquico e moral, ao acordar e a auxiliar o despertar daqueles que lhe compartem o espaço.

Portanto, é necessário comportarmo-nos como tal: abrir espaços, lutar, levantar a voz feminina que faz falta, apontar àquilo que nos angustia e nos sufoca nesta sociedade andocêntrica. Onde em seus muros se ouve as vozes sofridas e o sangue jorrado por mulheres anônimas que não se deixaram calar. Porque delas, de seus corpos foi construído o mundo.

Mundo ainda hostil, todavia através dos atos, das vozes, do esforço de seres que ao compreenderem a caminhada espiritual a ser vencida, construirão o mundo melhor, tão almejado por todos. Mundo esse que trará a plenitude do Espírito, o qual não é mulher, mas também não é homem. É o princípio inteligente do Universo. Metaforicamente são os braços Divinos a trabalhar e a estruturar uma sociedade justa, alegre em que todos temos a condição de viver como o que somos verdadeiramente: seres em busca da perfeição relativa, unidos, fraternos e solidários.

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