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O drama do escalpelamento na Amazônia

 Mara Régia Di Perna- Correio Braziliense

Escalpelamento: a face de um Brasil que ainda está a caminho de políticas públicas que garantam a segurança das populações ribeirinhas que dependem dos barcos como meio de transporte — gente que vive “no meio do mundo, na esquina do rio mais belo com a linha do Equador”, como canta o poeta amapaense Zé Miguel. Muito além da poesia, esses versos denunciam uma situação de isolamento da Amazônia, que facilita a impunidade e o descumprimento de leis, como a de nº 11.970, que desde 2009 obriga a instalação de uma proteção sobre o eixo, o motor e as partes móveis das embarcações. Essa lei nasceu de uma grande campanha de mobilização das vítimas de escalpelamento que, com coragem, ousaram expor suas sequelas físicas, emocionais e sociais dessa tragédia de dimensões amazônicas.

Os números comprovam que a legislação não dá conta de pôr fim a esses acidentes. Só nos últimos 45 dias, três novos casos foram registrados pela Capitania dos Portos. Uma triste estatística que preocupa, particularmente, a Sociedade Brasileira de Cirurgias Plásticas (SBCP), empenhada em minimizar as marcas da barbárie. Com esse objetivo, acaba de realizar mais uma etapa do mutirão de cirurgias plásticas reparadoras em Macapá, nos dias 17 e 18 deste mês. Num trabalho que mobilizou 42 médicos voluntários e mais de 170 profissionais de diversas áreas, a SBCP, aliada à Defensoria Pública da União e aos governos estadual e federal, realizou 32 procedimentos cirúrgicos que prometem reabilitar a autoestima das vítimas frente ao espelho.

O período pós-operatório é longo e demanda uma série de cuidados. Enquanto ele se cumpre, a Rádio Nacional da Amazônia, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), realiza uma campanha que, neste 28 de agosto, Dia Nacional de Prevenção e Combate ao Escalpelamento, vive sua culminância com a entrega de dezenas de mechas de cabelo arrecadadas para a Associação das Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento e máquinas de costura, compradas graças à coleta solidária de dinheiro entre os funcionários da EBC. Essas máquinas irão facilitar o trabalho da associação na produção de perucas para as pessoas que perderam todo o couro cabeludo, escalpelamento total.

Uma blitz marítima também será realizada hoje no Igarapé das Mulheres e no município de Santana, em Macapá, para marcar a data. Na ocasião, haverá ainda a distribuição gratuita do equipamento necessário à cobertura do eixo do motor entre os barqueiros que chegam das ilhas do Pará, onde a incidência do escalpelamento se dá com maior frequência.

Ações humanitárias e de mobilização são bem-vindas, mas a modernização da frota náutica, aliada à fiscalização mais intensiva das embarcações, se faz imperiosa. Numa reunião provocada pela defensora pública federal Luciene Estradas, ao fim do mutirão de cirurgias em Macapá, algumas estratégias foram definidas para acabar com o escalpelamento. Dentre elas, a inclusão da prevenção aos acidentes no currículo escolar; a criação de uma linha de crédito para auxílio dos ribeirinhos na aquisição de barcos mais seguros; e a utilização da fibra do curauá, bromélia característica da Amazônia paraense, como matéria-prima na confecção de coberturas de proteção para os eixos das embarcações.

Se conseguirmos tirar do papel todas essas ideias, quem sabe o Brasil poderá se distanciar de uma realidade perversa que nos remete aos filmes norte-americanos do início do século passado. Definitivamente, os povos da Amazônia não merecem viver a indigência de um Estado que os mantém reféns de uma cidadania de segunda categoria que não livra os homens da perda de seus pênis, as mulheres de seus cabelos, sobrancelhas e orelhas e as crianças da dor do preconceito e da discriminação na sociedade, inclusive nas escolas. Mudar esse cenário que contrasta com a beleza dos rios e igarapés da maior floresta tropical do planeta é tarefa de quem se recusa a viver à margem.

 Mara Régia Di Perna

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