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O dólar, o botijão de gás e o próximo presidente da República

Raul Manso, mestrando em Economia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), conversa com o Repórter Nordeste sobre a alta de preços, o dólar e o mercado.

Como explicar a uma pessoa que cozinha com lenha- porque o gás está caro- que o Governo “perdeu a mão” no controle do Real, o dólar está muito valorizado e isso é um dos motivos para a alta da inflação?
Quando compramos um botijão de gás de cozinha, estamos na verdade comprando petróleo refinado. Até o gás encanado é associado ao petróleo.

Assim já conseguimos perceber para qual bem primário devemos olhar para entender essa alta de preços.

No ano passado, com o começo da pandemia e a quebra de muitas cadeias produtivas ao redor do mundo, a demanda por petróleo caiu em demasia, chegando a ter preço negativo no mercado internacional. Ou seja, as pessoas estavam pagando para vender petróleo, por excesso de estoque.

Mas estamos falando do barril de petróleo, o petróleo cru. Ele é o ponto de partida para muitos dos produtos que consumimos hoje: plástico, estradas, combustíveis e gás de cozinha, por exemplo.

Se falamos de petróleo no Brasil, temos de olhar para a Petrobras. Ela detém o monopólio do refino do petróleo em território nacional.

Isso significa que nossos combustíveis têm de passar necessariamente pela Petrobras para estarem prontos para o nosso consumo.

Porém, isso por si só não explica a alta de preços. A Petrobras segue uma política de preços baseada no preço do barril de petróleo no mercado internacional, e, se falamos de mercados externos, estamos falando necessariamente de taxa de câmbio. Se o dólar sobe, o preço do petróleo sobe, e o contrário é verdadeiro.

Com a alta do dólar, o preço do gás de cozinha, que contém derivados de petróleo, vai aumentar. E não é o dólar que está sobrevalorizado: é o real que perdeu valor, muito valor.

Portanto, temos a soma de duas causas: a moeda brasileira desvalorizada e a valorização do petróleo no mundo, traduzida em alta dos seus preços.

Ter de recorrer a métodos não convencionais para conseguir alimentar-se é extremamente preocupante.

Quando temos de substituir um bem essencial por algo arcaico- o gás de cozinha pela lenha- não basta explicar: é necessário também sair dessa situação extraordinária. A sociedade deve cobrar explicações do governo sobre a sua política cambial e de bem-estar social.

O presidente Jair Bolsonaro ameaça um golpe de Estado e isso é tratado como um dos problemas para a retomada da economia. E a responsabilidade da equipe econômica?
A equipe econômica do atual governo tem a mesma opinião de fortes atores econômicos: a instabilidade política é um empecilho para a retomada da economia. É difícil não concordar com isso. Mas a divergência está em como devemos retomar a atividade econômica.

A principal preocupação do gabinete econômico hoje é o orçamento federal de 2022.

Fala-se em uma “bomba dos precatórios”, como se esta despesa tivesse sido uma surpresa para quem gerencia as contas públicas. De fato, o encargo é enorme, mas é uma dívida. Todos sabemos que dívidas devem ser pagas. Uma hora a conta ia chegar, e era possível estimar quando chegaria.

No entanto, parece-me que o objetivo de ajuste fiscal estaria longe com ou sem bomba.

Quando se fala de ajuste fiscal, o objetivo é tornar as receitas iguais ou maiores que as despesas, para não precisar recorrer a endividamento do governo, seja interno ou externo.

A deterioração das contas públicas é nítida já há muito tempo e a eficácia do teto de gastos é questionável. Aumenta-se a taxa de juros para controlar a inflação, mas isso afeta diretamente as nossas dívidas. Cortam-se verbas de setores essenciais para a vida da população, como a educação, a saúde e a reforma de bens públicos como estradas, mas o ajuste está longe de vir.

Por que falar de contas públicas é importante, nesse caso?

O governo acredita que a retomada dos investimentos do setor privado será dada com sinalizações positivas para o mercado, e a principal delas é nas contas públicas, um indicador de “solvência” do Brasil ao endividar-se. Com a vinda de novos investimentos, conseguiríamos retomar a atividade econômica de forma rápida, continuada e sustentável.

Não podemos dizer que o que se faz hoje é o máximo que se poderia fazer.

Temos diversas alternativas de política econômica que têm o potencial de fazer a economia crescer muito mais que hoje.

Ademais, a instabilidade política vai além da alçada da equipe econômica. Investidores brasileiros que operam no Brasil estão preferindo deixar o dinheiro em outros países por medo de desvalorização cambial e outras surpresas que podem estar à espreita.

Em bom português, o dinheiro brasileiro está fora do país.

É também difícil dizer qual seria a reação dos investidores se houvesse uma ruptura institucional.

Depende de qual classe econômica será representada nesse cenário.

O Centrão é criticado pela fome de cargos e de dinheiro, mas o mercado não reclama dele. Por que o mercado é pragmático?
Antes de chamá-lo de pragmático, precisamos entender o que é o mercado no jargão político.

É comum relacioná-lo como sinônimo de mercado financeiro, mas não é o suficiente, embora englobe grande parte.

Este é apenas parte do chamado mercado. Podemos facilmente afirmar isso quando vemos grandes investidores criticando veementemente medidas do governo e afirmando que a taxa de câmbio ideal do Brasil seria muito menor que R$ 5,00 por unidade de dólar.

Raul Manso: Hoje se fala de um auxílio social ampliado, ou um novo bolsa família, mas de modo muito precário, sem existir real interesse em redistribuir renda ou resolver o problema da pobreza.

Quando falamos de mercado, também podemos incluir fortes setores da indústria brasileira, os quais, não surpreendentemente, também participam do mercado financeiro.

É vendo desta forma que podemos identificar uma relação direta com o centrão.

O lobby é um componente político vigoroso na nossa política atual. As suas bancadas são fortemente relacionadas com esses setores, que agem a seu favor.

Nesse sentido podemos chamar o mercado de pragmático: ele busca o que lhe favorece, e participar da nossa vida política garante altíssimos retornos.

É, enfim, uma grande coalizão para além do Estado brasileiro.

Teto de gastos, novo bolsa família (Auxílio Brasil) e o mercado diz não haver dinheiro para um novo benefício, sem estourar o teto. Qual solução mais básica?
A solução mais básica é discutir e reformar o teto de gastos.

A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado Federal de grande renome em questões orçamentárias, vê grande risco em o governo brasileiro não conseguir cumprir o teto de gastos em 2021.

Com isso, convencer a equipe econômica atual de que benefícios sociais são prioridade em relação a outras despesas tidas como “essenciais” é uma tarefa quase impossível hoje.

Entretanto, estão considerando esta hipótese que você mencionou, um “bolsa família ampliado”. Percebe-se nessa questão um entrave entre o próprio presidente da República, que deseja vencer as eleições de 2022, e o ministro da Economia, que parece buscar cumprir o teto de gastos.

Não sabemos ainda quem terá a última palavra. Logo, a melhor solução de curto prazo, a meu ver, é pôr novamente em pauta esta emenda constitucional e promover uma ampla discussão da sociedade a fim de que definamos as nossas prioridades.

Uma segunda solução é também política. Teremos novas eleições no próximo ano, tanto para o Poder Executivo Federal como para o Legislativo. Eleger representantes que se comprometam com auxílios sociais é uma saída de médio prazo. Afinal, o teto de gastos foi promulgado por meios políticos, e somente por esses meios ele pode ser reformado.

Qual a principal diferença do modelo econômico da oposição para o de Jair Bolsonaro?
O papel do Estado na economia e nos setores prioritários.

Ainda assim, é difícil definir exatamente como seria a condução de um novo governo em 2022.

Explicarei em linhas gerais a política econômica atual e delinearei sinalizações de potenciais candidatos no próximo pleito.

O atual modelo econômico do governo é de atrair capitais privados — dinheiro do setor privado — para o crescimento econômico, sem que o Estado exerça a liderança. Há cortes consecutivos nos gastos públicos em setores que dinamizam a economia, como infraestrutura. A ênfase é na consolidação fiscal.

Há uma crença incomensurável de que, deixando o mercado “aberto”, a economia voltará a caminhar por conta própria.

A equipe econômica, por outro lado, aposta na captação de crédito no setor privado para financiamento de obras de longo prazo e manutenção dos seus negócios após o choque econômico decorrente da pandemia.

Para isso, apostaram por muito tempo na taxa de juro básica SELIC como instrumento para incentivar novos investimentos e entrada de capitais internacionais. Mas sabemos que existe, há muito tempo, capacidade ociosa na indústria e que investimentos estão fora de questão. Afinal, quem quer contrair novos empréstimos hoje?

Aposta-se no agronegócio — como sempre na história do Brasil — para dinamizar o Brasil internacionalmente, pelo seu altíssimo peso nas exportações, principalmente de soja, minério de ferro e carnes.

A intenção é captar dólar por meio dessas exportações para valorizar o real como moeda no mercado internacional, além de possibilitar a manutenção de contas do balanço de pagamentos.

Não se parece recorrer a outras alternativas para estimular a economia.

Hoje se fala de um auxílio social ampliado, ou um novo bolsa família, mas de modo muito precário, sem existir real interesse em redistribuir renda ou resolver o problema da pobreza.

Em alternativa, falar de um modelo econômico da oposição é algo generalizado.

Cada área oposicionista tem a sua proposta, ou a sua ausência de proposta. É muito comum no Brasil ouvirmos poucos detalhes de pré-candidatos na área de economia.

Jair Bolsonaro, por exemplo, foi eleito dizendo apenas que quem comandaria a pasta seria o Paulo Guedes, e que nada entendia de economia.

Não obstante, temos hoje oposição tanto à esquerda como à direita, embora esta última não se mostre ainda tão extremista como o atual governo.

Citarei alguns nomes que têm sido relevantes nos últimos meses.

  • Lula é o grande antagonista do governo Bolsonaro, mesmo quando está inerte. Mas suas propostas também são generalistas: a revogação do teto de gastos, reavivar diversos benefícios sociais e políticas de geração direta de empregos e aumento salarial. Em seu discurso do 7 de setembro, enfatizou a necessidade do investimento público. Isso acarreta uma maior participação do Estado na economia. Recentemente, disse que indicaria um nome político para conduzir a pasta da economia, devendo voltar com o Ministério da Fazenda. Ao mesmo tempo, busca se aproximar de setores empresariais e de lideranças religiosas que estão tradicionalmente na direita.
  • Ciro Gomes é também um forte nome para 2022. Ano passado, lançou um livro em que menciona como deverá moldar o modelo econômico de um eventual governo. Enfatizou o grande papel do Estado na economia, citando a década de 1930 sob a direção de Vargas. Há outras propostas, como a auditoria da dívida pública, uma nova política industrial e uma construção civil. Nele, parece-me mais transparente como deverá carregar a política econômica, a partir de uma espécie de neodesenvolvimentismo, com planos verdadeiramente delineados. Não há mistério em como conduziria a pasta da economia caso seu modelo econômico ganhe em 2022.
  • Um terceiro candidato, mais à direita, é João Dória, atual governador de São Paulo. Embora não haja propostas divulgadas que nos possibilitem esboçar um modelo econômico, sabemos que possivelmente sua condução será ortodoxa, com nomes do mercado e busca por resultados imediatos na parceria público-privada, algo não muito longe do que era tradicional o PSDB propor na década passada. Seu grande elo com o empresariado sinaliza um forte apoio por meio de redução da carga tributária e incentivos fiscais, como tem feito em seu mandato no estado de São Paulo.

“O Estado deve se intrometer o menos possível na vida do cidadão comum”, segundo Margareth Thatcher. Quem deve se intrometer menos e mais no Estado?
O debate sobre a intervenção do Estado na economia é extenso e infindável. Mas pouco se discute sobre o contrário.

Em um Estado Democrático de Direito, a população deve ter a voz preponderante sobre as decisões de nossa vida republicana, e isto está na nossa Constituição promulgada em 1988. A vontade popular é imprescindível e, de fato, ainda há muitos desafios para que no Brasil consigamos refleti-la no cotidiano político.

Margaret Thatcher acreditava que o Estado era naturalmente um empecilho para a prosperidade econômica do Reino Unido e que reduzi-lo, isto é, eliminar várias de suas funções e atribuições, seria o principal caminho para eliminar esses obstáculos.

A sua ideia subjacente é a de que o livre funcionamento do mercado faria com que os recursos fossem alocados de maneira ótima.

Em outros termos, significa que a ausência de regulação faz com que as pessoas tenham maior prosperidade econômica.

Todavia, a frase de Thatcher se torna insuficiente quando vemos o Estado como uma instância do povo para o povo. A sociedade deve decidir a sua própria vida socioeconômica. O grande perigo na abordagem de Thatcher reside na possibilidade de que poucas pessoas decidam por muitas em seu próprio favor.

A China reacende a figura do Estado que domina quase tudo mas autoritário. Qual a dificuldade de unir democracia e o sonho de um Estado para todos?
Não há apenas uma dificuldade; há várias. A ascensão chinesa como potência mundial sinaliza que não há apenas um único modelo para o crescimento ou, de certa forma, o desenvolvimento econômico.

A China obteve tamanho êxito nacional e internacional sob a mão de um único partido, que há algumas décadas passou a incorporar elementos do capitalismo contemporâneo com o seu ideal do que seria o socialismo.

Temos, assim, o Estado como ator extremamente importante para a economia chinesa, embora haja uma grande miríade de empresas que atuem sozinhas, inclusive com fins de comércio internacional.

Para estas últimas, a intenção é mostrar para os países ocidentais que não “trapaceará” no comércio internacional com a assistência de um grande Estado.

Fala-se também de que, na política chinesa, o povo tem forte participação. Mas com certeza não é o nosso modelo ocidental de participação política.

Nós priorizamos o pluripartidarismo, instituições moldadas sob o liberalismo dos séculos 18 e 19 e o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra, apesar de este último estar perdendo força nos últimos anos.

São, enfim, noções diferentes de participação social na medida em que as sociedades são diferentes.

Mas isso não significa que devamos seguir o modelo chinês, ou muito menos o modelo europeu, ou o modelo norte-americano.

Cada país tem seus próprios recursos para se desenvolver, e isso abre um leque de possíveis caminhos. Com isso, agora, posso elaborar uma lista não exaustiva de dificuldades.

A maior dificuldade é identificar quem está a influenciar em grande peso as ações do Estado e reverter a situação a fim de beneficiar a população como um todo. Neste sentido, uma verdadeira democracia seria eficaz. Ela estimularia reformas para aumentar a representação popular e promover um desenvolvimento homogêneo.

Uma segunda dificuldade geral seria identificar quais são esses recursos e utilizá-los plenamente de forma sustentável.

É também verificar como dinamizar a economia interna e como tirar proveito da conjuntura da economia internacional no momento do planejamento da estratégia para o desenvolvimento econômico. Isto não pressupõe autoritarismo; pelo contrário, é perfeitamente conciliável com um Estado democrático.

Na verdade, quando há a centralidade em uma única figura ou em um pequeno grupo, pode-se negligenciar tais recursos, materiais e humanos, e priorizar a perpetuação de práticas, por exemplo, patrimonialistas.

Outra dificuldade é a valorização do trabalho, que é elemento primordial para a construção da riqueza de um país. Se o trabalho não é devidamente valorizado, não temos como possibilitar uma junção da democracia com um Estado para todos. Juscelino Kubitschek, ao lançar a Operação Pan-Americana, comentou essa relação ao dizer que “sabemos todos que não há democracia onde há miséria”.

Viver a trabalhar todos os dias, todas as horas, e ainda assim não ter certeza de que conseguirá fazer sua próxima refeição ou dormir sob algum teto impossibilita a participação política, pois não há energia, tempo e ímpeto que sobre.

Quem não consegue emprego, ou está em um subemprego, fica numa situação ainda pior. E isso tende a se perpetuar no tempo. É apenas valorizando o trabalho que conseguiremos iniciar um real processo de desenvolvimento econômico.

3 respostas

  1. Muito bom ler de alguém que entende tão bem do assunto. Entrevista muito explicativa, elucidativa e rica em informações necessárias para compreender nossa situação, e até mesmo nos ajuda a começar a refletir sobre a escolha das próximas eleições.

  2. Muito bem explicado a complexidade em que estamos passando e desenvolvendo esperanças para um futuro melhor em breve no nosso país, riqueza nós temos até demais!!! Avancemos #forabolsonaro

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