O coro grego

Luiz Paulo Horta- O Globo

Woody Allen novo na praça. Dizem que não é dos melhores. Mas quem faz um filme de dois em dois anos tem direito de errar, ou de oscilar.

Acabo de rever “Poderosa Afrodite”, que considero um grande filme. O próprio Woody está em cena, num movimentado enredo em que ele é o pai de um menino adotado e está em busca da verdadeira mãe. Que ele acaba localizando na pele de uma sedutora prostituta. O toque de gênio é a entrada de um coro grego que acaba contracenando com os atores – como na velha Grécia. O coro dá conselhos, comenta a ação e (tratando-se de Woody Allen) termina envolvido em maravilhosas coreografias. Mas, mesmo nesse tom de brincadeira, o que o coro procura destrinchar é a complicada costura de um destino.

Como na velha Grécia, o mistério, mesmo, é esse jogo do destino. E comentando esse jogo, o coro pode ter múltiplos papéis. Na “Electra” de Sófocles, ele tenta consolar a heroína, que entrou em desespero depois que seu pai, Agamenon, foi morto por sua mãe, Clitemnestra. Diz o coro: “Tem confiança, minha filha, o grande Zeus está presente nos céus, de onde ele tudo vê e tudo governa. Entrega a ele uma dor que te faz sofrer além das tuas forças. O tempo é o deus que pacifica tudo.”

Responde Electra: “Sim, eu sei, mas já vi passar muito tempo sem ser atendida em minhas esperanças.” E o coro: “Prudência, não digas mais nada. Com teu humor impaciente, provocando sempre conflitos, atraíste mais sofrimento do que seria a tua parte. Há coisas que não se discute, quando estamos tratando com os poderosos.”

Como se vê, o coro grego podia ser bem pragmático, contrastando com o raciocínio heroico. Também não é um oráculo que saiba tudo. Como em seu diálogo com Cassandra, a outra filha de Clitemnestra. Sendo ela vidente, a sorte da família (na peça de Ésquilo) lhe arranca gritos e lamentos. Comenta o coro: “Um deus cruel abateu-se sobre ti com toda a sua força, e te obriga a produzir esses gemidos e dores lancinantes. O que resultará disso, não conseguimos adivinhar.”

Não adivinha; mas faz um contraponto comovente às peripécias do herói. É muito bom quando esse contraponto existe para as nossas perplexidades. Não estar sozinho é uma grande coisa. Em sentido contrário, a solidão no poder resulta nas consequências mais estranhas.

A história moderna teve as suas cassandras, que farejaram desgraças próximas e multiplicaram advertências. Houve o imenso Thomas Mann, que nos anos 20/30 produziu dois importantes “discursos à nação alemã”. O de 1930 tem toda a urgência de uma situação-limite, a crise econômica e o consequente desemprego dando aos nazistas a chance de explorar ao máximo um tipo de nacionalismo que mergulhava cada vez mais no irracionalismo e no fanatismo.

Outra cassandra famosa foi Winston Churchill, que, ao longo dos anos 30, multiplicou advertências contra o militarismo alemão e a ascensão do nazismo. A classe política inglesa tapava os ouvidos; Churchill era considerado alarmista, derrotista. Até que, já começada a guerra, foi chamado para chefiar o governo.

Fico pensando como um coro grego seria útil ao nosso ex-presidente, nas noites em que ele deve ter tempo de sobra para suas maquinações políticas. Certamente por excesso de poder e de sucesso, ele de repente parece ter perdido sua fenomenal intuição, e provoca sucessivos arranhões numa imagem que já teve conotações grandiosas. Mau para ele, e para o Brasil.

Ouvir o coro grego não é sinônimo de pusilanimidade. Há momentos em que o herói arrosta ventos e tempestades, indiferente às advertências. Se Cristóvão Colombo não tivesse uma dose notável de audácia, teria deixado seus navios no porto, e a América não seria descoberta (pelo menos não naquele momento).

O que faz a diferença entre o herói audaz e o insensato? Alguma coisa muito fina, uma espécie de faro, que tem a ver com o destino de cada um. Mais que outros povos, os gregos antigos tinham o sentido da “hubris”, da falta de medida, que faz até mesmo um herói errar nos seus julgamentos. Os gregos modernos parecem ter perdido esse faro; ou não teriam caído de olhos fechados na armadilha do euro.

Afinal de contas, é na Grécia de hoje que o coro grego parece mais necessário. Nem que seja, como nas tragédias antigas, para chorar junto com os desgraçados.

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