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O CFM e a interrupção da gravidez

Florisval Meinão e Florentino Cardoso- Estadão

A respeito da recente posição do Conselho Fede­ral de Medicina (CFM) favorável à autonomia da mulher para decidir sobre a in­terrupção da gravidez até a sua 12a semana sem necessidade de autorização médica, é funda­mental esclarecer que esse não e, sobremaneira, o pensamen­to de todos os médicos brasilei­ros. Em nossa visão, a medicina é uma ciência que cuida da vida e a respeita prioritariamente.

Crianças em gestação de até 12 semanas são seres vivos. Por­tanto, aprovar a autonomia pu­ra e simples da mãe sobre a in­terrupção da gravidez eqüivale a concordar com a eliminação devidas sem maiores justificativas. Essa prática não condiz com os princípios da medicina, na opinião de parcela significa­tiva dos médicos.

Sendo assim, consideramos precipitado o indicativo de uma entidade médica, da for­ma contundente como foi fei­to, a respeito de um tema extre­mamente delicado e polêmico, que deve ser amplamente deba­tido por toda a sociedade brasi­leira. Os médicos, como qual­quer outro segmento social, ob­viamente, têm o direito de ex­pressar suas opiniões. No en­tanto, por não refletir a posição consensual dos profissionais de medicina, a manifestação do CFM pode confundir a opinião pública e até mesmo prejudicar a imagem dos médicos perante a população. A atitude de des­considerar a diversidade moral e cultural no meio médico, as­sim como a multiplicidade argumentativa, fere, inclusivamente, o discurso da bioética, plural e aprofundado, em torno do aborto.

Defendemos a interrupção da gravidez nos casos em que há indicação clínica, como anencefalia – malformação que causa a ausência total ou par­cial do cérebro – e risco para a saúde e de morte comprovados da gestante. Ao mesmo tempo, outras situações devem ser dis­cutidas e decididas pela socie­dade, como ocorreu em relação as gestações ocasionadas por estupro, atualmente passíveis de aborto legalizado.

Interessante trabalho con­junto da Universidade de Brasí­lia (UnB) e da Universidade Fe­deral do Rio de Janeiro (UFRJ) aponta que 70% das mulheres que abortam no Brasil são esco­larizadas, têm entre 20 e 29 anos, têm, no mínimo, um filho e vivem em relação estável. Por­tanto, esses resultados estão em desacordo com a tese de que a maioria dos procedimen­tos ilegais para interromper a gestação se refere a mulheres da parcela menos favorecida da população e que não tem aces­so à informação.

Por sua vez, embora defenda a autonomia da mulher para realizar o aborto, a organização não governamental Católicas pelo Direito de Decidir enco­mendou pesquisa ao Ibope que mostrou, entre outros dados, que 59% dos entrevistados dis­cordam da interrupção da gravidez em qualquer caso e 47% dis­cordam da condenação de mu­lheres que a fazem por proble­mas financeiros, medo de per­der o emprego e abandono do parceiro. Foram ouvidos 2.002 católicos em 140 cidades, no mês de novembro de 2010.

Vale lembrar que a autono­mia da mulher sobre seu corpo – expressão citada pelo Conse­lho Federal de Medicina em sua recente divulgação -, primeira­mente possibilita a ela utilizar métodos contraceptivos, o que é difundido em nosso país por meio da oferta de pílulas anti­concepcionais no programa Farmácia Popular e de campa­nhas de distribuição de preser­vativos, apenas para citar al­guns exemplos. Já a decisão de abortar, ainda que somente até o terceiro mês de gravidez, não envolve apenas a mãe, mas, em especial, a criança. Trata-se do direito à vida.

Também é questionável o es­tabelecimento de um limite co­mo 12 semanas. Muitos de nós se perguntam qual é a diferença entre um feto de 12 semanas, 13 semanas ou 40 semanas. Ou­tros vão além, inquirindo sobre o que diferencia um bebê em gestação de outro que já nas­ceu, tendo em vista que todos os nossos sentidos se desenvol­vem dentro do útero materno, assim como as nossas primei­ras percepções.

O argumento de que a medi­da – a liberação do aborto em gestações de até 12 semanas – evitaria as graves conseqüên­cias dos procedimentos clan­destinos é insuficiente parajus- tificá-la. Esse é um desafio permeado por diversas determi­nantes sociais, que precisa ser enfrentado pela sociedade. Não pode, no entanto, ser redu­zido à decisão simplista de per­mitir a eliminação de vidas de maneira irrestrita. O respeito à vida deve sempre nortear esse debate.

De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil dispõe de 138 serviços de interrupção legal da gravidez e está sendo refor­çado o acolhimento, por equi­pes multidisciplinares, de pa­cientes que se tenham submeti­do a práticas inseguras de abor­to. Pretende-se avançar, ainda, no planejamento familiar. Me­dicamentos orais e injetáveis de contracepção e dispositivos intrauterinos (os DIUs) são dis­tribuídos gratuitamente, en­quanto o serviço público tam­bém oferece laqueadura de trompas e vasectomia nos ca­sos em que são indicados. Ações como essas têm de ser reforçadas continuamente.

No processo de reforma do Código Penal, em trâmite no Congresso Nacional, espera­mos que sejam preservados os pontos de vista de todos os mé­dicos brasileiros no que se refe­re a esse tema. Os parlamenta­res e juristas que se debruçam sobre a questão devem ofere­cer oportunidades equânimes para que os profissionais de me­dicina se expressem em suas di­ferentes visões.

É importante que o debate te­nha participação efetiva de to­dos os médicos, associações de especialidades médicas e ou­tras entidades representativas, juntamente com os demais se­tores da sociedade. Só assim po­deremos enriquecer as varia­das argumentações, levando a uma reflexão madura e pautada nos aspectos científicos, éti­cos, morais, religiosos, cultu­rais e sociais, como deve ser nu­ma democracia como a nossa.

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