O canto da sereia

A relação econômica bilateral tem aumentado velozmente, impulsionada pela demanda chinesa por commodities brasileiras e pela demanda brasileira por investimentos, bens de capital, bens intermediários e bens de consumo chineses

Jorge Arbache- assessor da presidência do BNDES e professor de economia da Universidade de Brasília-Valor Econômico

Brasil e China têm histórias, culturas e  instituições bastante distintas, mas têm características em comum que os  tornam candidatos naturais a cooperar e a usufruir das potencialidades e  ambições um do outro. Ambos têm economias robustas, territórios ricos  em recursos naturais, grandes populações e gozam de crescente  protagonismo global. Mas ambos têm enormes desafios, alguns em comum,  como pobreza e dinâmica demográfica, e outros particulares, como  déficits crônicos das contas correntes, baixa taxa de investimento e  pressões inflacionárias persistentes no Brasil, e crescente carência de  energia e alimentos necessários para manter o crescimento elevado e a  estabilidade política na China.

A relação econômica bilateral tem  aumentado velozmente, impulsionada pela demanda chinesa por commodities  brasileiras e pela demanda brasileira por investimentos, bens de  capital, bens intermediários e bens de consumo chineses. De fato, em  2011, o comércio bilateral alcançou US$ 77 bilhões, um aumento de 38% em  relação a 2010. No ano passado, o superávit comercial com a China  correspondeu a nada menos que 39% do nosso resultado total. A China não  apenas é de longe a principal parceira comercial, mas, também, a  principal fonte de investimento estrangeiro direto no Brasil.

As  oportunidades de aprofundamento das relações econômicas bilaterais são  bastante promissoras. Em favor do Brasil estão a incorporação de  centenas de milhões de chineses à economia moderna e o aumento do  consumo das famílias, que elevam a demanda por commodities. Em favor da  China estão o nosso crescimento econômico e a expansão da classe média,  que criam novas oportunidades de negócios.

As relações econômicas  com a China têm beneficiado o Brasil no curto prazo. De fato, as  exportações para a China contribuem para amenizar os déficits das contas  correntes, enquanto as importações de produtos chineses têm sido úteis  para disciplinar os preços internos e facilitar o acesso a bens de  consumo, máquinas e insumos.

O outro lado da moeda é que as  relações bilaterais, tal como elas se encontram, induzem a produção de  commodities e desencorajam fortemente a produção industrial. Isto porque  o padrão de comércio Brasil-China caracteriza-se como o tipo mais  radical de comércio “norte-sul”, muito mais radical até do que aquele  com os Estados Unidos ou com a União Europeia: importam-se produtos  manufaturados e exportam-se commodities. Em 2011, 91% das exportações  brasileiras para a China foram commodities, enquanto as importações  brasileiras da China representam parcelas crescentes do consumo aparente  de manufaturados, chegando, em alguns setores, a mais de 50% do total.  Já o investimento chinês no Brasil concentra-se em commodities,  notadamente em petróleo, gás e mineração e na infraestrutura necessária  para a sua exportação, tal como ocorre na África. Forja-se, com isso,  uma crescente complementariedade entre as duas economias.

Diferentemente  de outros países em desenvolvimento produtores de commodities, o Brasil  tem uma indústria consolidada, inclusive com “market share”  internacional não desprezível em alguns setores e, por isso, tem muito a  perder com a estagnação da sua indústria. Ainda mais preocupante é a  queda da diversificação das exportações e a crescente dependência de  commodities. A evidência empírica internacional mostra que países mais  dependentes da exportação de commodities tendem a ter crescimento  econômico mais volátil e mais lento no longo prazo.

No Canto XII  da Odisseia de Homero, Odisseu foi alertado pela deusa Circe dos  desafios que enfrentaria ao passar pelas traiçoeiras águas das ilhas das  sereias. Para sobreviver ao naufrágio iminente, Odisseu deveria  resistir à provação do canto sedutor das sereias. Odisseu ordenou que o  amarrassem fortemente ao mastro da sua nau, mandou tapar os ouvidos dos  seus marujos com cera e lhes ordenou remar com todas as forças para que  se livrassem logo daquelas águas. Odisseu ouviu os cantos das sereias,  mas resistiu desesperadamente, o que lhes permitiu seguir viagem em  segurança.

A relação econômica atual Brasil-China guarda  similaridades alegóricas com a peça de Homero. A primarização não é  destino e tampouco a crescente dependência à economia chinesa deve ser  vista como panaceia para as deficiências da economia brasileira. O que, à  primeira vista, são sedutoras e irresistíveis facilidades associadas a  preços baixos de produtos importados, elevados ganhos com exportações de  commodities e acesso facilitado a investimentos e financiamentos pode,  na verdade, ser uma cilada com riscos substanciais e não negligenciáveis  ao crescimento sustentável.

Em razão da singularidade dos dois  países e do enorme potencial de cooperação, a relação Brasil-China  requer uma visão menos pragmática por parte do Brasil e mais  estratégica. É preciso buscar uma agenda de colaboração com objetivos  mais amplos baseada no princípio do mútuo benefício, num horizonte de  longo prazo. A agenda deve incluir parcerias em ciência e tecnologia,  acesso a mercado, acordos de investimentos e o reconhecimento das  enormes diferenças das políticas econômicas e comerciais nacionais e de  seus impactos altamente assimétricos no padrão de comércio e  investimento bilateral.

A China é, antes de tudo, uma grande  oportunidade para o crescimento brasileiro. Mas, para que essa  oportunidade se transforme em crescimento sustentável, será preciso o  Brasil fazer o seu dever de casa. Para isso, será necessário, em  primeiro lugar, que o país saiba o que quer da relação com a China. Em  segundo lugar, para se mitigar a desindustrialização, será preciso  aproveitar a base industrial, a experiência e a capacidade empreendedora  para explorar industrialmente o enorme potencial brasileiro em áreas  como recursos naturais, alimentos, energia e biotecnologia. Tal  empreitada vai requerer investimentos em inovação para agregação de  valor e melhoria do ambiente de negócios. Em terceiro lugar, será  preciso uma diplomacia econômica mais vigorosa e equipar o país com mais  e melhores recursos humanos e institucionais de defesa de nossos  interesses.

Por fim, se, por um lado, a atual relação Brasil-China  é sedutora por atenuar as nossas vulnerabilidades econômicas de curto  prazo, por outro lado, ela cria novas vulnerabilidades de longo prazo,  as quais poderão se manifestar já num contexto de eventual desaceleração  do crescimento chinês.

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