Mitos e equívocos

Ao contrário do que se propalou, as privatizações dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Campinas (Viracopos) não são as primeiras dos governos do PT

José Serra-ex-governador de São Paulo

As avaliações sobre a recente privatização de  três aeroportos brasileiros têm misturado duas coisas: a questão  política, enfatizada pela maior parte da oposição e retomada pelo PT, e a  da forma e do conteúdo do processo.

Ao contrário do que se  propalou, as privatizações dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e  Campinas (Viracopos) não são as primeiras dos governos do PT. Basta  lembrar as espetaculares privatizações na área do petróleo, lideradas  pelo megainvestidor Eike Batista, sob a cobertura da lei aprovada no  governo FHC – alterada recentemente para pior -, e na geração e  transmissão de energia elétrica.

Outra ação privatizante digna de  menção ocorreu nas estradas federais, a qual fracassou, não obstante o  clima de comemoração na época. Fez-se a concessão de graça, pôs-se  pedágio onde não havia, mas os investimentos não chegaram, as estradas  continuam ruins e o governo federal só faz perdoar as faltas dos  investidores. Um modelo furado, que pretendia ser opção vantajosa ao  adotado por São Paulo, com vista a dividendos eleitorais em 2010.

O  padrão petista de privatização chega ao dinheiro público. O governo faz  concessões na área elétrica e as subsidia, via financiamentos do BNDES e  reduções tributárias. Não se trata de dinheiro do FAT, mas tomado pelo  Tesouro à taxa Selic, repassado ao BNDES a custo bem inferior. Outro  exemplo é o da importante e travada Ferrovia Transnordestina. O governo  está pagando quase toda a obra, com dinheiro subsidiado, mas a  propriedade da concessão é privada. Quem banca a diferença? O  contribuinte, é lógico. Quem faz a filantropia? Os governos petistas,  cujas privatizações são originais, ao incluírem grandes doações de  capital público ao setor privado.

O outro grande exemplo –  felizmente, ainda virtual – é o do trem-bala Rio-São Paulo, projeto  alucinado que poderá custar uns R$ 65 bilhões, a maior parte de recursos  diretos ou indiretos do governo federal e até mesmo dos Estados, via  renúncia fiscal, ou dos municípios, que teriam de fazer grandes obras  urbanas. O governo quer bancar também os riscos operacionais do  empreendimento: se houver número insuficiente de passageiros, o Tesouro  comparecerá para evitar prejuízo para o empreendedor privado!

Para  alguns representantes extasiados da oposição, com as concessões dos  aeroportos, “finalmente o PT se rendeu à privatização”, como se este  governo e o anterior já não tivessem promovido as outras que  mencionamos. Poderiam, sim, ter lembrado o atraso de pelo menos cinco  anos na entrada do setor privado na atividade aeroportuária – atraso  ocorrido quando a agora presidente comandava a infraestrutura do Brasil.

As  manobras retóricas do petismo são toscas. O primeiro argumento, das  cartilhas online e de grandes personalidades do partido, assegura que  não houve “privatização” de aeroportos, mas “concessão”. Ora, no passado  e no presente, os petistas chamavam e chamam as “concessões” tucanas  (estradas em São Paulo, telefonia, energia elétrica, ferrovias, etc.) de  “privatização”.

Os PT argumenta ainda que a Infraero mantém 49%  das ações de cada concessionária. Isso é vantagem? Em primeiro lugar, a  estatal está pondo bastante dinheiro para formar o capital das empresas  sob controle privado – sociedades de propósito específico (SPEs) – que  vão gerir os aeroportos. Além disso, vai se responsabilizar por quase  metade dos recursos investidos, sem mandar na empresa.

Mais ainda:  pagará 49% da outorga (preço de compra da concessão) de cada aeroporto.  O total de outorgas é de R$ 25 bilhões, número comemorado na imprensa e  na base aliada. Metade disso virá do próprio governo, via Infraero!  Isso sem contar os fundos de pensão de estatais, entidades sob hegemonia  do PT, que predominam no maior dos consórcios, ganhador do Aeroporto  Franco Montoro, em Guarulhos. Tais fundos detêm mais de 80% do grupo  privado que comandará o empreendimento!

A justificativa de que a  Infraero obterá os recursos para investimentos e outorgas da própria  concessão é boba – até porque ela já está investindo nas SPEs e vai  sacrificar seus retornos. De mais a mais, quais retornos? As outorgas  são obrigatórias, enquanto as receitas são duvidosas. A receita líquida  do aeroporto de Guarulhos foi de R$ 347 milhões em 2010. A bruta, R$ 770  milhões. A outorga dessa concessão será paga em 20 parcelas anuais de  R$ 820 milhões… Mesmo que a receita líquida duplicasse, de onde iriam  tirar o dinheiro para os investimentos? No caso de Brasília, a outorga  exigirá cerca de 94 % da receita líquida…

Com razão, o senador  Francisco Dornelles (PP-RJ), favorável, como eu, às concessões,  ponderou: “Com o que sobra é possível entregar a qualidade desejada?  Difícil. Difícil até mesmo operar com os baixos níveis atuais, pois  sobrará para as concessionárias muito menos dinheiro do que a Infraero  tem hoje”.

O que poderá acontecer? As possibilidades são várias:  mudanças nos contratos, revisão, para cima, de tarifas, atrasos nos  investimentos necessários, subsídios do governo e prejuízos para os  cotistas dos fundos. Tudo facilitado pela circunstância de que a  privatização (um tanto estatizada) tirará o TCU do controle e  transparência de gastos com aeroportos…

Existe ainda um erro  elementar e pouco notado. De todos os consórcios que entraram no leilão  foi exigida a participação de uma operadora internacional de aeroportos.  Mas os consórcios onde estavam as boas operadoras perderam a licitação.  E as operadoras internacionais dos grupos que ganharam são de segunda  linha…

A Presidência da República reclamou disso, como se não  fosse o governo o responsável. O correto teria sido as operadoras  internacionais serem introduzidas depois da licitação. Cada consórcio  vencedor convidaria então uma operadora, a ser aprovada previamente pelo  governo como condição para a homologação da concorrência. É uma  sugestão que pode ser adotada nos futuros leilões. Por ora, fica o leite  derramado…

.