Repórter Nordeste

Mensalão e os direitos fundamentais

Murilo Aragão- Advogado, sócio-fundador do escritório LRCA Advogados, mestre em ciência política e doutor em sociologia pela UnB- Correio Braziliense

Com o início do julgamento em agosto da Ação Penal Originária 470, mais conhecida como Mensalão do PT, o Supremo Tribunal Federal terá nova oportunidade de tratar de uma questão central para a Justiça no país: a da garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição. O tema embasa o pedido de desmembramento do processo, formulado por um dos réus.

Há cerca de um ano, o relator Joaquim Barbosa recusou o pedido de desmembramento e nem sequer permitiu que o agravo fosse julgado pelo Pleno da Suprema Corte, sob a alegação de que o assunto já havia sido apreciado pelo STF. A recusa foi destacada por alguns que viam no desmembramento um expediente para atrasar o andamento do processo e beneficiar os réus com a eventual prescrição de parte dos crimes.

Contra essa suposição, há o fato de que todos os atos e provas produzidos seriam utilizados no andamento do processo nas instâncias inferiores e estas estariam aptas, portanto, a proceder de imediato ao julgamento. A diferença fundamental é que, nesse caso, os réus teriam preservado o direito ao duplo foro, qual seja, o direito de recorrer da sentença a outra instância %u2014 o que não poderá ocorrer, caso o julgamento seja feito no foro privilegiado do STF.

Quando apreciou na origem o pedido de desmembramento, o STF entendeu que, em razão do contexto em que se deram os fatos apurados, seria pouco recomendável cindi-lo, sob pena de se perder a sequência lógica do cometimento dos supostos delitos, resultando de eventual separação mais prejuízos que benefícios ao andamento do processo.

Com a devida vênia, tendo em conta que a decisão se baseou em legislação infraconstitucional, caberia ao STF revisitar a questão, olhando-a agora sob o prisma da garantia constitucional do duplo foro. Negando-se esse direito fundamental aos réus comuns (ou seja, aqueles que não dispõem de função pública que justifique serem processados no foro %u201Cprivilegiado%u201D), a quem poderão recorrer caso queiram reparar eventual injustiça? Essa impossibilidade prejudica a grande maioria dos réus do caso mensalão.

Mantida a decisão contra o desmembramento, sacrificam-se as garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição. O mesmo não aconteceu em processo muito semelhante %u2014 o do chamado mensalão mineiro do PSDB, em que os supostos crimes seriam decorrentes de esquema idêntico ao do mensalão do PT. No caso mineiro, o STF acolheu a proposta de desmembramento, assegurando aos réus sem função pública o direito ao duplo grau de jurisdição.

Empresa especializada em análise política, a Arko Advice realizou uma pesquisa sobre foro privilegiado e duplo grau de jurisdição entre os dias 7 de maio e 5 de junho deste ano com 52 deputados federais advogados, oriundos de 13 partidos políticos, incluindo parlamentares da oposição e da base aliada do governo, representantes de todas as regiões do pais.

Os principais resultados da pesquisa foram os seguintes: (1) Os deputados estão divididos quanto ao fim do foro privilegiado para autoridades %u2014 44% são favoráveis e 48% contrários; (2) dos 44% favoráveis ao fim do foro privilegiado, 68% acham que ele deva ser mantido para crimes decorrentes do exercício da atividade pública; (3) 92% dos entrevistados afirmam concordar que o duplo grau de jurisdição é um direito fundamental do cidadão.

Ou seja, em relação à discussão que deverá voltar à pauta do STF, é importante registrar que a quase totalidade dos parlamentares com formação jurídica concorda que o duplo grau de jurisdição (que decorre do direito a ampla defesa) tem status constitucionalmente fundamental.

Se essa visão, coerente com o espírito das garantias constitucionais prevalecer, os réus sem foro privilegiado deverão responder por suas condutas perante um juiz de primeiro grau. A competência ratione personae do STF para julgar alguns corréus não deve ser empregada para agrilhoá-los.

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