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Martírio de Herzog

Josemar Dantas- Correio Braziliense

Nos conflitos nacionais entre dissidentes políticos e forças repressivas, abater rivais em combates armados é — vá lá o óbvio — o risco que correm as partes envolvidas. Nos países que se situam na constelação dos civilizados, uma vez pacificados pela instalação de regime consentido por todos, concede-se anistia aos participantes do enfrentamento. Pela anistia, os atos beligerantes ganham a qualificação de crimes políticos. São subtraídos à esfera da reprimenda penal à força de perdão eterno e tratados como se jamais houvessem ocorridos. Mas, como todos sabemos, a indulgência é aplicável apenas aos que feriram ou mataram adversários no curso da confrontação política.

A anistia não pode se estender — pelo menos não deveria — aos agentes repressores e a grupos insurrectos que torturaram ou executaram prisioneiros. Os autores de violências da espécie, apagadas as chamas do estado revolucionário, cumpririam ser investigados e, provada a culpa, apenados segundo as regras legais. O caso da Argentina é paradigmático quanto ao dever de punir responsáveis por excessos hediondos. Sob pressão de milhares de famílias que foram às ruas e praças protestar, a anistia decretada em 1983 pelo presidente Raúl Alfonsin foi declarada inconstitucional por decisão da Corte Suprema.

Das mais de 200 pessoas levadas a julgamento nos tribunais, entre as condenadas figuraram os três integrantes da junta militar que governou os argentinos entre 1976 e 1983: o general Jorge Rafael Videla, a 50 anos de prisão; o almirante Emílio Massera, a reclusão perpétua; e o brigadeiro Orlando Rámon Agosti, a quatro anos e seis meses de custódia prisional. Agosti, já falecido, não chegou a cumprir a pena: foi declarado insano. Durante a ditadura militar, cerca de 30 mil pessoas foram trucidadas.

Não teve a dimensão de genocídio, como ocorreu na Argentina, a reação do regime militar instalado no Brasil (1964/1985) aos que lhe moviam oposição pelas armas ou o combatiam na imprensa e em protestos de ruas. Sabe-se, todavia, que algozes da ditadura torturaram e deram cabo à vida de cidadãos já feitos prisioneiros.

Vítima inconteste de semelhante atrocidade foi o jornalista Vladimir Herzog, morto em dependência do Exército (DOI-Codi) em São Paulo, em 1975, depois de ser torturado. Os implicados na barbárie organizaram cenário para convencer a opinião pública de que Herzog se havia enforcado. Todavia, a foto da cena comprovou que o enforcamento era incompatível com a hipótese de suicídio, mas, ao contrário, deixou clara a ocorrência de assassinato.

Em atendimento a denúncia feita pela Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), entre outras instituições, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA requereu ao Brasil abertura de investigações sobre a morte de Wladimir Herzog. O governo brasileiro se negou a atender à CIDH sob a alegação de que a anistia impede a abertura de ação criminal contra os carrascos de Herzog.

Trata-se de decisão que viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 (Pacto de San José), e a Convenção de Genebra sobre Tratamento de Prisioneiros de Guerra, de 1949. Ambos os tratados foram referendados pelo Brasil. Conforme dispõe o artigo 5º, § 3º, da Constituição, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pelo governo brasileiro “serão equivalentes a emendas constitucionais”. Assim, a resistência ao requerimento da CIDH afronta a própria Carta Magna.

Ironia histórica: o objetivo do golpe militar de 1964 era o de livrar o Brasil da ameaça comunista. Fracassou. Assim que os militares, em 1985, deram meia-volta rumo à caserna, os comunistas se aboletaram no poder.

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