Marcelo Henrique: Por muitos nãos, ainda!

Marcelo Henrique

“Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim”, Caetano Veloso.

O mundo mudou substancialmente nas últimas décadas. As liberdades individuais e os direitos fundamentais – entre os quais o de SER o que se quiser – têm sido conquistadas e mantidas, não sem lutas homéricas, resistências e convocações públicas para movimentos e intervenção jurídica por meio de medidas judiciais.

A identidade humana vem sendo reconstruída, a partir do progresso da Humanidade, sobretudo pela contribuição das ciências em ressignificar a existência, dando vazão a explicações mais racionais e verossímeis acerca das diferenças presentes nos espécimes humanos.

Se, tanto pela íris, pelas digitais e pela inteligência somos tão diferentes, importa igualar-nos em termos do exercício dos direitos, importando ampliar até o infinito o tamanho do guarda-chuva sob o qual se encontram os mais de sete bilhões e meio de habitantes do planeta. Idealmente, claro, já que há países onde o conservadorismo e a intransigência de regimes políticos não permitem aos diferentes terem os mesmos direitos dos (que se dizem) iguais.

Comemore-se, portanto, em relação aos cenários sociais em que é possível reivindicar o direito de ser o que se é, com suas delícias (como cantou Caetano), e exercê-lo. Não sem muita luta, anterior e atual, é claro. As minorias não são tão minorias assim, dependendo do foco e do espectro daquilo que se busca garantir.

Sou um defensor de primeira hora das liberdades sexuais – e dos direitos delas decorrentes. E não preciso ser um “diferente” para me posicionar como signatário de tantas bandeiras – tão plurais quanto as cores do arco-íris que está na bandeira oficial da causa LGBTIQ+. Não se trata de proselitismo, tampouco de defesa em “causa própria”, portanto. Caso contrário, teríamos que esperar que as minorias estivessem ocupando (todas) as posições nos cenários jurídico, legislativo e empresarial, para o alcance da efetivação de um direito. Impossível e desnecessário.

Por outro lado, nenhuma “minoria” deseja ser maioria. Incrível como alguns seres obtusos do nosso tempo temem, por exemplo, uma “ditadura gay”. Ou prelecionam e discursam em “favor” das crianças, dizendo que a proximidade com gays poderá ditar-lhes, ainda na primeira infância, modos e hábitos, tendências e expressões, como se alguém fosse “o que é” porque “vê nos outros” aquilo que deseja, intimamente, ser. Falta base, falta ciência, falta razoabilidade, falta sentimento. Enfim, falta tudo!

Foi nos primeiros dias dos bancos universitários da Federal catarinense, em Direito, que ouvi falar do axioma e desiderato das leis e da Justiça (dos homens): “isonomia é igualar os iguais, em suas igualdades, e desigualar os desiguais, na medida de suas desigualdades”. O adágio, assim expresso, pode não ser, de pronto, entendido clara e definitivamente por todos. Daí a necessária explicação de que os iguais gozam da isonomia (igualdade jurídica) cabendo à lei o cuidado de tratar com acuidade os que não estejam em tal posição, elevando-os à mesma categoria daqueles.

Em termos de modernidade jurídica, pode ser, isto, simbolizado na equidade. Como a figura que a ilustra, em que três meninos de alturas diferentes, desejam ver o que há do outro lado do muro. E, usando de caixotes para alcançar uma maior altura, não podem, lado a lado, usar os mesmos objetos, de forma isonômica. Se forem seis os caixotes, o mais alto utilizará apenas um e o mais baixo, três, ficando o intermediário com dois. E todos estarão, portanto, na mesma altura e irão conseguir, juntos, enxergar o atrativo antes escondido.

Em termos de sexualidade – que é um dos elementos fundamentais da personalidade humana e não se vincula, necessariamente, aos elementos materiais-corporais, os órgãos propriamente ditos – há que se garantir, sempre, o direito de escolha e de manifestação, independente de rótulos (sejam religiosos, sejam culturais, sejam político-sociais). A sexualidade, assim como a convicção amorosa, política, religiosa, artística, literária, cognitiva, etc., não se enquadra em padrões de unicidade ou razoabilidade (considerada, esta, como a “razão” de muitos ou da maioria).

Por isso, vejo com muito afeto e com satisfação a perspectiva de estarmos ampliando a análise e a discussão sobre o direito sexual (ou direitos sexuais) em várias partes do mundo. Esta semana, inclusive, noticiou-se o drama de uma menina francesa de oito anos de idade – que nasceu, biologicamente, menino – e que trava uma luta íntima para evidenciar-se como mulher, e não homem. E precisou alçar mão de “remédios” agudos – como várias e sucessivas tentativas de suicídio – para, enfim, revelar-se TRANS e desejar ser reconhecida como feminina. Revelou, nesta faixa etária, isto aos pais e, felizmente, recebeu deles o apoio incondicional para iniciar uma luta FAMILIAR pelo direito de reconhecimento desta natureza e identidade.

A imensa luta de Lilie – inicialmente solitária e angustiada – é a de muitas crianças e jovens por todo o mundo, em razão do confronto entre a personalidade e a morfologia. E, como Lilie, não há qualquer patologia – e isto foi reconhecido clinicamente na análise de seu caso, conforme atestou o seu pedopsiquiatra. Estudos clínicos, aliás, têm demonstrado que a identidade trans já pode ser reconhecida entre os 3 e 4 anos de idade e nada tem a ver com “influências” exteriores ou da “moda” e da cultura, nem distúrbios ou patologias. Vale dizer que, mesmo havendo, ainda, algumas barreiras legais no território europeu para a concretização de alguns direitos – como a troca definitiva, no registro civil, do nome, que só é, em regra, possível, a partir dos 18 anos, a França tem sido pioneira no acolhimento da comunidade TRANS, como demonstra a abolição do termo “transexualismo”, substituindo-o por transidentidade, desde 2010. E, mais além, a Organização Mundial da Saúde, recentemente (2019), retirou a transexualidade da relação de doenças mentais.

O não de Caetano, na poesia musicada citada neste ensaio, é – e será, ainda, por muito tempo – mais que uma piedosa solicitação. De um brado, como o de Lilie, passa a ser uma exigência. Por muitos nãos, então, ainda!

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